Covid-19. Risco e coragem: a vida das enfermeiras ligadas ao desporto

Duas pertencem aos quadros da Federação Portuguesa de Futebol, as outras jogam na equipa feminina do Fiães. O desporto ficou para segundo plano e a missão é derrotar um adversário de grandes proporções.
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"A partir do momento em que entramos da porta do hospital para dentro, é como se esquecêssemos o mundo cá fora. E quando chegamos a casa não queremos sequer ver televisão. Estamos focadas nisto a 200%. Esta é a nossa única missão nesta altura. Estar na linha da frente e cuidar de quem precisa de nós. Sentimos que vamos enfrentar o imprevisível e que de certa forma esta batalha está nas nossas mãos." As palavras, duras, são de Inês Simões, enfermeira que pertence aos quadros da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), no seu caso ligada à seleção de futsal feminina que se sagrou vice-campeã da Europa há sensivelmente um ano. Este é o sentimento, garante, da grande maioria dos profissionais de saúde que estão diariamente no combate à pandemia de covid-19. Muitos com ligação à área do desporto.

Inês, de 32 anos, é enfermeira há 11 e trabalha num hospital do grupo Lisboa Norte (prefere não revelar o nome), um dos maiores do país. Está na linha da frente a combater a pandemia que virou o mundo ao contrário e o último mês tem sido muito complicado. Sobretudo em termos emocionais: "É um misto de emoções, de medo, ansiedade, uma angústia enorme de termos de sair das nossas casas para termos de vencer este vírus. Mas, ao mesmo tempo, é um sentimento de dever cumprir com o compromisso que fizemos, que é zelar pelo bem de todos e prestar cuidados a Portugal."

Ana Guerra, de 34 anos, é colega de Inês, também enfermeira das seleções nacionais. No seu caso trabalha para a FPF desde 2012 e neste momento está ligada à seleção de futebol A feminina. A situação de Ana é um pouco diferente. Trabalha numa unidade de saúde mental de um hospital da região de Lisboa, mas está também ligada aos serviços prisionais. "No hospital não lido propriamente com casos de covid-19 - a existirem são encaminhados para as urgências, apesar de termos de estar atentas aos sintomas -, mas temos notado o impacto que toda esta situação está a ter em pessoas com patologia mental, nomeadamente estados de ansiedade e alterações de humor", relata ao DN.

Nos serviços prisionais "é outro mundo". "Temos tido algumas dificuldades em termos de recursos humanos, que na verdade já tínhamos, mas agora a situação agravou-se. E também a nível de proteção, apesar de já terem sido tomadas algumas diligências nesse sentido. Temos de estar atentas sobretudo aos sintomas dos reclusos e no caso de haver alguém com sintomatologia suspeita contactamos de imediato a Linha Saúde 24 e seguimos as orientações que eles nos derem. A existirem casos suspeitos há indicações para as pessoas serem colocadas em isolamento profilático, que temos já disponível no serviço", conta.

As enfermeiras do Fiães

A equipa de futebol feminino do Fiães, clube de Santa Maria da Feira que atua na Série Norte da II Divisão, tem duas jogadoras que são enfermeiras. E por isso estão neste momento única e exclusivamente focadas no trabalho extradesportivo, até porque o campeonato, à semelhança do desporto em geral, foi suspenso. Andreia Santos, de 37 anos, está na primeira linha do combate ao covid-19 no Hospital de São João, no Porto, uma das unidades onde estão internadas mais pessoas infetadas.

Andreia Santos, amavelmente, não quis prestar declarações. Mas o clube que representa fez questão de lhe enviar uma mensagem de força e de esperança através das redes sociais: "Vemos que está muito cansada, mas nunca vai pedir a substituição. Sabemos que quer sempre ir até ao final do jogo e este temos mesmo de vencer. Obrigado por lutares por nós. Toda a equipa está a ajudar, ficando em casa, como tu nos pedes."

A outra enfermeira do Fiães também se chama Andreia, neste caso com o apelido Matos. Tem 26 anos e é a guarda-redes da equipa de Santa Maria da Feira. Mas atualmente a sua missão não é evitar golos, mas sim salvar vidas. Trabalha na Unilabs, mas está atualmente num posto drive thru em Grijó a fazer testes a pessoas com suspeita de infeção de covid-19.

"Sou enfermeira há cerca de dois anos e não tenho dúvidas: esta é a experiência mais dramática que tive até hoje. E olhe que já passei por situações marcantes, até porque fui bombeira, mas nada como isto. Nada deste patamar. É sem dúvida o momento mais marcante da minha vida como enfermeira. Mas a nossa missão é esta: ajudar as pessoas", atira ao DN.

No posto onde faz as recolhas, com as pessoas dentro do carro e sem poderem sair das viaturas, Andreia, equipada com um fato dos pés à cabeça "e por segurança com dois pares de luvas calçadas", diz que o sentimento difere de pessoa para pessoa: "Há uns mais calmos, até porque vão só mesmo para despistar, mas há quem esteja muito nervoso. Quase sempre no final perguntam se o resultado do teste vai demorar muito. É normal. A ansiedade e a angústia tomam conta de todos nós."

O isolamento familiar

Inês Simões e Ana Guerra, as enfermeiras da Federação Portuguesa de Futebol, impuseram a si próprias um isolamento familiar por razões de segurança. "Vivo muito próxima da minha mãe e da minha avó, via-as todos os dias. E também do meu namorado e da minha irmã. Mas há cerca de 20 dias para cá decidi tomar esta decisão de isolamento familiar. Não estou em contacto com as pessoas mais próximas para as proteger. Neste momento sou eu e a minha cadelinha. Fazemos companhia uma à outra", conta Inês. Ana também não tem contacto com ninguém: "Passamos períodos difíceis e de grande pressão e stress, em que nos apetece estar com alguém mais próximo. Mas não podemos. Vamos falando por videochamada, mas não é a mesma coisa. Muitos já não os vejo desde dezembro."

Para Inês, o stress não está relacionado com o número de horas de trabalho, até porque a carga não aumentou assim tanto. "A azáfama é muito maior porque os turnos são sentidos de uma maneira diferente. A intensidade é muito maior. As circulares que saem a toda a hora da DGS obrigam-nos a mudar todo o nosso panorama de prestação de cuidados, e isso faz que cheguemos a casa exaustas. É um turno de oito ou dez horas, mas muito mais intenso, onde estamos expostos a outro tipo de fatores e que nos obriga também a gerir as nossas emoções."

Ana confessa que lhe faz muita falta e sente saudades do ambiente do desporto. "A última vez que estivemos todas juntas ao serviço da seleção foi no estágio da Algarve Cup [torneio de futebol feminino que acabou por ser cancelado], no início de março. Foi a última vez que tivemos contacto pessoal antes de tudo isto acontecer. Tenho muitas saudades daquele ambiente. Mas o desporto teve mesmo de parar por causa do contacto. Não podia ser de outra maneira", diz.

Também Andreia Matos não vê a hora de tudo isto passar e poder voltar à baliza do Fiães. "O futebol é o meu escape. Antes disto tudo treinava duas vezes por semana, às terças e sextas, e depois tinha os jogos ao domingo. Sempre consegui conciliar a minha profissão de enfermeira com o futebol. As saudades são muitas, sobretudo dos fins de semana com jogos. Que falta me fazem...", desabafa.

As prioridades das enfermeiras Inês e Ana, quando for possível o regresso à normalidade, passam por voltar a estar com as pessoas de quem mais gostam, já que se submeteram a um isolamento familiar. "A primeira coisa será abraçar os meus. Estou com muitas saudades de abraçar a minha avó, a minha mãe, dar um beijo ao meu namorado, à minha irmã. É deles que eu sinto mais falta", atira Inês. "Quando isto tudo passar é voltar a ver o meu sobrinho de 2 anos. Se calhar não pode ser logo, porque nós profissionais de saúde se calhar ainda vamos ter de aguardar algum tempo para podermos estar com as nossas famílias", recorda. Já Andreia Matos, por ainda estar com a família, só pensa em "ir com os colegas para uma esplanada na praia". "Faz-me falta ver o mar e soltar gargalhadas e dizer as maiores trivialidades aos meus amigos." Até lá, não se sabe bem ainda quando, vão manter-se nos seus postos de trabalho a zelar pela saúde de todos nós.

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