Quase quatro meses depois que a existência do novo coronavírus passou a ser conhecida e que o mesmo se espalhou por todas as regiões do mundo, transformando-se numa pandemia, o relativamente baixo número de casos positivos e de mortes ocorridas em África permanece um mistério para toda a gente. No entanto, mantêm-se também inalterados os receios de um provável desastre no continente..O mais fácil, mas igualmente esclarecedor sobre a visão estereotipada dos que assim pensam, é desconfiar dos números existentes até agora sobre o impacto do covid-19 nos países africanos. Acontece que é simplesmente impossível existirem estatísticas 100% fiáveis sobre a doença, pois nem os pouquíssimos países que apostaram desde cedo na testagem em massa o fizeram com todos e cada um dos seus cidadãos..A crença de que as altas temperaturas estarão a contribuir para o baixo número de casos na região não passa, pelo menos por enquanto, disso mesmo: uma crença, que a ciência não confirmou ou, mesmo, não confirma. A verdade é que países da América do Sul, como o Brasil, igualmente conhecidos pelas suas elevadas temperaturas nesta época do ano, estão a ser altamente afetados pelo vírus. Aguardemos pela época fria e seca (maio-julho), para ver o que acontece..Como leigo que sou a respeito desta matéria, atrevo-me a sugerir que os fatores que poderão justificar os baixos números referentes ao novo coronavírus em África sejam fundamentalmente os seguintes: primeiro, o reduzido fluxo de turistas, comparativamente com outras regiões (assinalo, argumentando a contrario, que os quatro países africanos com mais casos do novo vírus são alguns dos que recebem habitualmente um maior volume de turistas); segundo, o rápido fechamento das fronteiras decidido pela maioria dos Estados do continente..Como já mencionei aqui em artigo anterior, há uma circunstância que não pode, em boa justiça, ser minimizada: a experiência africana em lidar com endemias e outras crises sanitárias, o que, certamente, levou as autoridades dos diferentes países a agir rapidamente, ao contrário das lideranças de alguns dos países mais desenvolvidos e com sistemas de saúde mais estruturados..O que explicará, então, os cenários traçados por alguns, em especial fora do continente africano, que apontam para a possibilidade verdadeiramente dantesca de as mortes na região resultantes do covid-19 poderem vir a ser contadas em cifras de milhões e não apenas milhares de pessoas?.Neste mês, um grupo de 50 intelectuais africanos divulgou uma declaração sobre o impacto do novo coronavírus na região que começa precisamente por considerar esse alarme como a "segunda vaga do afropessimismo", numa comparação com a provável segunda vaga do novo vírus, para a qual os cientistas, em todo o mundo, têm avisado. Para os subscritores da declaração, esse tipo de previsões "malthusianas" diz mais sobre os seus autores do que sobre a realidade em África..Os referidos intelectuais assinalam que, até agora, os receios sobre o impacto do coronavírus em África "carecem de justificações concretas e documentadas". Eles não têm dúvidas: tais cenários catastróficos, se considerarmos o continente como um todo, "podem, de facto, ter um impacto negativo na economia, agravando a avaliação de risco já desfavorável aos países africanos antes do covid-19, com os investidores em total incerteza"..Depois de recordarem "os efeitos catastróficos de décadas de ajustamento estrutural dos sistemas públicos de saúde" nos países africanos, os autores da declaração que estou a citar defendem que, paradoxalmente, a atual pandemia pode ser "uma histórica oportunidade para os africanos mobilizarem os seus recursos - tradicionais, novos, diaspóricos, científicos, digitais, criativos - espalhados por todos os continentes, para emergirem mais fortes de um desastre que outros já previram para eles"..Entre as diferentes soluções sugeridas pelos 50 intelectuais africanos, destaco a necessidade de abandonar o autenticamente suicida "cash economy model", baseado na exportação de matérias-primas; total reformulação dos sistemas de saúde pública, considerando, por exemplo, que a evacuação médica das elites é "um caso de injustiça social e irracionalidade económica"; promoção de uma real união económica dos países africanos e de um espírito de solidariedade que implique um profundo conhecimento da realidade, em especial nas áreas rurais, assim como uma nova e consciente ligação do continente e as suas diásporas.."O coronavírus pode marcar uma espécie de fim da história e o início da construção de modelos alternativos. É altura de África inventar o seu", pode ler-se na declaração. Ambição excessiva? Talvez, mas, de qualquer modo, é uma oportunidade para promover algumas mudanças que são imperiosas no continente. O futuro dirá até onde elas poderão ser feitas..Jornalista e escritor angolano, diretor da revista África 21