Covid-19 no Reino Unido: da imunidade de grupo ao primeiro-ministro hospitalizado
Depois de ter inicialmente desvalorizado o impacto da pandemia e apostado na ideia de criar "imunidade de grupo", o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, encontra-se não só entre os mais de 50 mil britânicos que contraíram a doença, como entre os quase 18 mil que estão hospitalizados por causa dela.
O desafio de lidar com o coronavírus torna-se assim pessoal para o líder do governo britânico, que estava numa maré de sorte depois de um resultado histórico nas eleições de dezembro e de cumprir com a promessa de sair da União Europeia. As suas outras promessas têm agora de ficar de lado diante da pandemia.
Boris Johnson, de 55 anos, deu entrada no hospital St. Thomas no domingo à noite, a conselho dos médicos, dez dias depois de ter sido diagnosticado com covid-19 (a 27 de março). Desde essa data estava a trabalhar desde o apartamento por cima do número 11 de Downing Street, em isolamento, tendo no sábado a sua namorada (que está grávida) dito que tinha passado a semana de cama com sintomas da doença (não fez contudo o teste).
Esta segunda-feira, o porta-voz de Downing Street indicou que ele continuava hospitalizado "para observação" e tinha tido "uma noite confortável" e estava "animado". A mesma fonte indicou que o primeiro-ministro tem febre e tosse, mas quando questionado sobre se o chefe de governo tinha pneumonia disse apenas que qualquer alteração ao estado de saúde será tornada pública.
O porta-voz não negou contudo a informação de que o primeiro-ministro tinha recebido tratamento com oxigénio durante a noite, mas recusou dar mais pormenores, sendo certo que os sintomas que apresenta já não estão a ser descritos como "leves". Os sintomas são "persistentes", indicam agora.
No Twitter, o primeiro-ministro disse que estava "animado" e continuava "em contacto com a minha equipa, enquanto trabalhamos juntos para lutar contra este vírus e manter toda a gente em segurança". Boris Johnson agradeceu ainda aos funcionários do serviço nacional de saúde e repetiu o apelo para que os britânicos fiquem em casa.
Caso o primeiro-ministro fique incapaz de continuar a assumir a liderança do governo, caberá a Dominic Raab assumir temporariamente esse papel. O chefe da diplomacia é também primeiro secretário de Estado, logo o número dois do governo.
Mas, na prática, não há nada na lei que diga quem deve assumir o cargo em caso de incapacidade do primeiro-ministro. Winston Churchill (um dos heróis de Boris Johnson, que escreveu uma biografia do ex-primeiro-ministro) teve um enfarte em junho de 1953, quando estava no cargo, tendo a doença sido mantida em segredo (alguns ministros nunca souberam, recuperando e voltando ao trabalho dois meses depois.
Já Tony Blair teve que ser operado em duas ocasiões ao coração, tendo aliviado a sua agenda mas voltado ao trabalho pouco depois. Na altura indicou-se que, no caso de o primeiro-ministro ficar incapacitado, seria substituído pelo seu número dois, John Prescott, até que um novo líder pudesse ser eleito.
Raab liderou esta segunda-feira a reunião do grupo de trabalho sobre o coronavírus, mas o gabinete do primeiro-ministro garante que Johnson ainda está aos comandos. O conselho de ministros de terça-feira foi cancelado.
O chefe da diplomacia, de 46 anos, já fez o teste ao novo coronavírus, depois de ter tido tosse, tendo o resultado sido negativo.
Raab foi nomeado ministro do Brexit por Theresa May, em julho de 2018, depois de ter passado pela secretaria de Estado da Justiça e da Habitação, mas demitiu-se quatro meses depois em desacordo com a primeira-ministra por causa do acordo de saída da União Europeia. Raab foi um dos que participou ativamente na campanha do referendo para o Brexit, em 2016.
Quando May deixou a liderança do Partido Conservador, Raab foi um dos candidatos à sucessão, tendo sido afastado na segunda ronda de votações, apoiando então Boris Johnson que o premiou com a chefia da diplomacia e o cargo de número dois do executivo.
Johnson foi criticado pela resposta tardia à pandemia, com o Reino Unido a apostar inicialmente pela ideia de "imunidade de grupo", quando no continente europeu já estava a ser aplicado confinamento. Agora, o Reino Unido já só está atrás de Itália, Espanha, França e Alemanha no número de mortos causados pela pandamia na Europa.
A ideia da "imunidade de grupo" é normalmente usada numa referência à vacinação de um grande número de crianças, que permite que aquelas que não são vacinadas fiquem também protegida. Nunca se tinha tentado chegar à "imunidade de grupo" permitindo que uma doença se espalhasse -- e tendo em conta o resultado, parece que a ideia não será repetida novamente.
Inicialmente, o governo britânico defendia que só as pessoas que tinham febre e tosse deviam isolar-se durante sete dias em casa. Mas um estudo do Imperial College sobre o eventual impacto no número de mortos (260 mil) levou o primeiro-ministro a anunciar, a 16 de março, uma alteração da regra, acrescentando a necessidade de isolar também a família de quem apresentasse sintomas, defender o distanciamento social, pedindo a todos os que têm mais de 70 anos para ficar em casa e fechando as escolas (mas só a partir de 20 de março).
No dia 23, quando o número de mortes já se aproximava das cem diárias, Boris Johnson dava a ordem de confinamento a toda a população.
Uma análise dos dados mostra que o número de mortes nos hospitais por coronavírus tem vindo a duplicar a cada três dias e meio no Reino Unido. Esta segunda-feira, o país anunciava que até às 17.00 de domingo tinham morrido 439 pessoas (403 só em Inglaterra), com o número total de mortes desde o início da pandemia a ultrapassar as cinco mil -- 5373. Já há mais de 50 mil infetados (51 608).
Um número inferior aos anunciados na véspera, quando tinham sido registados 621 óbitos, mas tem sido normal uma queda de números ao domingo e à segunda-feira -- por atrasos de informação do fim de semana, subindo depois na terça-feira. A continuar a este ritmo, o Reino Unido poderá ter duas mil mortes por dia no final da semana.
Entretanto, o governo procurou reforçar a sua resposta, construindo hospitais de campanha para aliviar o sistema de saúde a transbordar (em Londres foi inaugurado o NHS Nightingale na semana passada). Além disso, prometeu aumentar a capacidade de testar a população, com testes rápidos cuja fiabilidade alguns contestam. A nível económico e social, abriu os cordões à bolsa de forma a desbloquear grandes quantidades de dinheiro para ajudar os que têm o emprego em risco.
As medidas de confinamento contra o coronavírus têm "consequências extremamente severas" para a economia britânica, com uma queda de 31% na atividade e um custo de 2,4 mil milhões de libras por dia, segundo um estudo do Centro de Pesquisa Económica e Empresarial de Londres.
No domingo à noite, e apenas pela quinta vez durante o seu reinado excetuando os tradicionais discursos de Natal, a rainha Isabel II falou na televisão para deixar uma mensagem de esperança aos britânicos. "Juntos, estamos a enfrentar esta doença e quero garantir que, se permanecermos unidos e resolutos, vamos superá-la", disse a monarca que vai fazer 94 anos no final do mês, indicando ainda: "Vamos voltar a encontrar-nos."