Cova da Moura: "Pretos do c***, pensam que estão em casa"
Para António Angelino Almeida, tudo começaria na porta número 52 da Rua do Moinho, a sua casa na Cova da Moura. Aos 27 anos, mais de três anos após as alegadas agressões de agentes da PSP da Esquadra de Alfragide, é mais uma de cerca de 30 testemunhas que o Ministério Público (MP) convocou para o tribunal. Angelino também foi à esquadra naquele dia, mas conseguiu escapar às agressões. A história que contou esta terça-feira foi, por isso, mais curta do que a dos seus amigos e colegas, mas o jovem não esquece a forma como foram recebidos pelos agentes naquele mesmo dia: "Pretos do c***, pensam que estão em casa", ouviu um agente dizer.
Mais de três anos depois dos acontecimentos que levariam 17 agentes da PSP a serem acusados pelos crimes tortura, sequestro e injúrias motivados pelo racismo, Angelino ainda não consegue esconder o nervosismo nas suas palavras. Terão sido os disparos, "pelo menos dois", que o fizeram sair de casa, por volta das 15h00 da tarde do dia 5 de fevereiro de 2015, onde estava com a namorada. Quando saiu, já só conseguiu ver Bruno Lopes, uma das alegadas vítimas, algemado, a ser transportado para dentro da carrinha policial.
O aparato na rua já era visível e o morador da Cova da Moura não hesitou em juntar-se à discussão, de onde partiria a ideia de os seis jovens - Flávio Almada, Celso Lopes, Bruno Lopes, Miguel Reis, Fernando Veiga e ele próprio - irem até à esquadra. "Quando me disseram que o Timor (Bruno) tinha sido levado e que ele não tinha feito nada, decidimos ir até à esquadra saber o que se tinha passado", conta.
Ao contrário de Flávio, Celso, Bruno e Miguel, Angelino e Fernando conseguiram escapar antes de poderem ser agredidos pelos agentes. Mas ambos ainda conseguiram ver o início de tudo o que aconteceria depois, enquanto fugiam.
"Quando chegamos a cinco metros da esquadra, vimos dois agentes a varrer vidros junto à carrinha (que seria a mesma que os polícias alegaram ter sido atingida por pedras no bairro). Questionaram onde íamos. Dissemos que queríamos saber do nosso amigo. Quando seguimos em direção à esquadra, um deles meteu a mão à nossa frente e disse que não podíamos passar, e o outro foi lá para dentro". "Pretos do c***, pensam que estão em casa", ouviu nesse momento. E, de repente, sem contar, Angelino vê-se em fuga, depois de "cerca de seis agentes" saírem da esquadra em direção a eles com cassetetes, um deles com uma caçadeira, de onde dispararia um primeiro tiro.
"Espantei-me e dei uns passos atrás", recorda. "Estava do lado direito e não me acertaram por acaso. Chamei o Fernando para o pé de mim, passamos para o outro lado da rotunda (junto à esquadra) e ouvimos outro tiro" - este segundo aquele que feriria Celso no coxa. Depois desse tiro, todos os agentes terão empunhado os seus cassetetes e começado a agredir continuamente os jovens. Já em fuga em direção ao bairro, Angelino conta que ainda foi olhando para trás, para perceber se os amigos também estavam a conseguir sair dali. Foi numa dessas espreitadelas nervosas sobre o próprio ombro que viu Flávio e Celso a serem atirados ao chão e agredidos.
"Por acaso" e "por sorte". É assim que Angelino descreve o facto de ter conseguido fugir a tempo de não se tornar uma das alegadas vítimas que se têm sentado em tribunal para testemunhar as agressões.
Só nos dias seguintes saberia o que terá acontecido aos que ficaram para trás. Questionado pelo coletivo de juízes se não estranhou o facto de os jovens terem sido agredidos, desde o princípio, sem razão aparente para o efeito, o morador da Cova da Moura confessa que sim. Por isso se sente revoltado com o tema. E não fez questão de o esconder durante este última sessão de julgamento, onde trocou tensas palavras com a mandatária de defesa dos arguidos, quando colocava em causa algumas das declarações do jovem.
Angelino Almeida confessa: "Estávamos longe de imaginar que isto ia acontecer". Mesmo consciente de que qualquer interação com a polícia deve ser bem ponderada. "Eu sou do bairro há muito tempo e sei bem como os agentes agem. Jamais iríamos passar dos limites sabendo que eles poderiam responder mais agressivamente e poderia correr muito mal", remata.
Por isso mesmo também, como explica, é que resolveram ir "juntos à esquadra", com "medo de ir sozinhos".
Esfregavam a cana do nariz ou a barba insistentemente, coçavam o pescoço, batiam com a mão no braço, ruíam unhas e segredavam entre si. No julgamento desta terça-feira, não estavam só as testemunhas a favor da versão das seis alegadas vítimas. Atrás delas, estavam sentados 12 dos agentes constituídos arguidos no processo, pela primeira vez desde que foram ouvidos pelo tribunal. O tribunal concordou, recorde-se, com o pedido do Ministério Público para que as seis alegadas vítimas fossem consideradas especialmente vulneráveis e pudessem prestar o seu testemunho sem a presença dos arguidos. Angelino não está entre este grupo.
Outra testemunha foi António Oliveira, 51 anos, mecânico de automóveis. Também morador do bairro, trabalha numa oficina a apenas alguns números acima da porta de Angelino. Não é uma testemunha com muito por contar, mas viu de perto o aparato que se gerou com a presença policial no bairro, naquele dia.
"Bófia filho da p***", ouviu. Nessa altura, António já se teria apercebido de que havia uma rusga no bairro, uma vez que o acesso para a sua oficina estava condicionado por forças policiais. Conta que por volta das 13h terá ouvido "três raparigas jovens" a gritar e a insultar agentes - estes fora do seu campo de visão até ao momento. Pensou imediatamente "é melhor fechar a porta, que ainda vai dar confusão". E é nesse momento, em que se dirige à porta para a fechar que ouve disparos e um agente na sua rua, "com uma espingarda". António diz que as três raparigas que estavam junto à porta da sua oficina entraram para dentro do seu estabelecimento, com medo, mas quis logo "correr com elas dali para fora". "Arranjaram bronca e agora vêm cá esconder-se, pensei."
À luz da sua interpretação dos factos, não considera que o agente se dirigisse às raparigas, até porque este terá seguido em frente, supostamente sabendo que elas teriam entrado na garagem de António. Depois de as conseguir tirar da oficina, aí sim, fechou a porta e não testemunha mais acontecimento algum.
Maria Amélia Vieira, 55 anos, a terceira testemunha ouvida esta terça-feira, chegaria à Rua do Moinho muitas horas depois dos acontecimentos. É a mãe de Rui Moniz, um dos ofendidos, ouvido na semana passada em tribunal. "Assim? Sem fazer nada", terá sido a resposta de Maria quando o filho lhe ligou para a informar que estava detido, na altura sem adiantar grandes explicações do que se viria a passar a esquadra de Alfragide.
Conta que, no dia anterior, pediu a Rui que fosse resolver uma situação contratual com a operadora de telecomunicações com a qual estavam vinculados. Era o filho quem costumava tratar dos assuntos burocráticos e das contas da casa. O jovem prometeu tratar do assunto e foi à saída da loja de telecomunicações, junto à esquadra, que foi surpreendido por três agentes que o terão agredido, insultado e depois levado para o estabelecimento policial, onde já estariam os outros jovens detidos.
Socos e pontapés. Foi assim que Rui contou ter sido recebido pelos agentes na esquadra. Só mais tarde conseguiria fazer o telefonema para a mãe, que se dirigiu imediatamente até lá, com um tacho e medicamentos debaixo do braço. Rui sofreu um AVC quando era mais novo, ficou com mazelas (um braço paralisado e uma perna com dificuldades de locomoção) e desde então que está dependente de medicação e de uma alimentação mais vigiada, como conta a mãe.
"Estava lá muita gente, familiares dos miúdos. Pedi informação ao agente que estava à porta, mas não me diziam nada", explica. Insistiu, alertando para os cuidados médicos que o filho necessitava, mas sem retorno. "Fiquei lá com o tacho e o medicamento na mão. E não sei se ele estava lá dentro ou não", concluiu.