Cova da Moura: de pacifistas do bairro a "agressores" de polícias
Em fevereiro de 2015, quando foram detidos pela PSP - em circunstâncias que têm duas versões, a deles e a dos polícias - Celso e Flávio pertenciam à Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ). O primeiro era 1º secretário da assembleia-geral, o segundo era, e ainda é, membro da direção e trabalha no apoio educativo a crianças. Uma das suas funções era mediar situações de conflito entre moradores do bairro e a polícia e a sua detenção - e alegadas agressões violentas e racistas por parte dos agentes - agravou e elevou a notoriedade a este caso. No bairro eles eram pacificadores, mas os polícias acusados disseram que foram violentos e agrediram agentes.
Em entrevista ao DN, em julho de 2017, pouco depois de ter sido conhecida a acusação, falaram do impacto deste caso nas suas vidas e no bairro. "O que mais me assustou foi perceber que não havia um único agente de confiança que nos pudesse ajudar. Houve um momento em que perdi toda a esperança. Fiquei mesmo com medo, achei que era o fim", disse Celso Lopes. "Nunca vou esquecer a cara do agente que nos disse que se pudesse exterminar-nos-ia a todos. É um ódio que nos têm e que não sei explicar", recordou Flávio.
Celso Lopes tem 35 anos, é filho de pais cabo-verdianos e nasceu em Portugal. Tem o 12º ano e está a trabalhar numa empresa de informática. Deixou o bairro a seguir aos incidentes e vive com a mulher e um filho na margem sul. Flávio Almada, igualmente com 35 anos, vive na Cova da Moura e é foi pai este ano pela primeira vez. é mestrando em Estudos Internacionais no ISCTE e agente de Educação Familiar na ACMJ. Apoia crianças no seu estudo. Alguns questionaram-no sobre o sucedido. "Perguntam como é que aconteceu aquilo a alguém tão "quieto" como eu. Eu digo "estudem que um dia vão perceber". Eles já conhecem esta realidade mas estranharam que até eu tenha sofrido o mesmo. Digo-lhes "estão indignados? Utilizem a indignação e estudem. A sociedade não funciona e está contra vós? Estudem e vão perceber como pode funcionar a vosso favor"", contou ao DN em maio deste ano, na véspera do início do julgamento.
Dois dos polícias arguidos - que o Ministério Público (MP) acusa de sequestro, tortura, ofensas corporais agravadas, motivados pelo ódio racial - disseram em tribunal que Celso e Flávio faziam parte do grupo que tentou invadir a esquadra, para resgatar um dos amigos detido momentos antes na Cova da Moura (Bruno Lopes), e que foram agredidos por eles. André Silva contou que Flávio "entrou pela porta a dentro" e lhe deu "um pontapé no joelho". Em reação, o agente atirou-o "para o chão, algemou-o" e levou-o "para dentro" da esquadra.
Por seu lado, o agente João Nunes foi "obrigado" a disparar um tiro de shotgun quando, segundo relatou em tribunal, Celso, juntamente com Flávio, entraram "pelo ar" pela esquadra dentro. Contou que Celso "vinha com o pé no ar" e ele "disparou um tiro para o chão" (não dois como afirma o MP, um deles em diretamente para a coxa). Negou que tivesse apontado para a perna de Celso e justificou o ferimento pelo possível "ricochete" do projétil (bago de borracha) quando disparou para o chão. "Na altura ele nem se queixou. Esteve ali muito tempo e nunca se queixou, depois é que nos apercebemos que estava ferido. Se eu tivesse visto era o primeiro a prestar-lhe assistência", declarou.
Esta sexta-feira Celso e Flávio vão contar a sua versão. O MP, sustentado pelas provas periciais e testemunhos da investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ, não acreditou nos polícias. No despacho de acusação, o MP alega que ambos faziam parte de um grupo de seis jovens do bairro (e não 20 a 25, conforme diziam os agentes) que se deslocaram à esquadra "com o intuito de saber o que se passava com Bruno Lopes (...) sem terem esboçado qualquer tentativa de se introduzirem à força nas instalações policiais".
Um dos agentes terá chamado a "malta" lá de dentro e formaram um cordão em frente da porta, ordenando que os jovens se fossem embora. Estes, alega o MP, "respondiam que apenas estavam ali para falar com o responsável da esquadra". O agente João Nunes correu em direção ao grupo e dois dos jovens fugiram. Ficaram quatro, entre eles o Celso e o Flávio. Um dos agentes, descreve a acusação, apontou para Flávio e disse para os colegas "apanhem aquele que tem a mania que é esperto".
Estes apanharam Flávio e contra ele "desferiram diversas pancadas com o bastão, que o atingiram em diversas partes do corpo, causando-lhes dores, após o que o detiveram e conduziram também para o interior da esquadra". De seguida os agentes bateram também em Celso e nos outros dois jovens que ali tinham ficado, o Miguel e o Paulo.
Quando disparou contra Celso, o agente Nunes disse, de acordo sempre com a versão do MP, "este tem que ficar, vão todos morrer pretos de merda!". Depois "outros quatro agentes rodearam o ofendido Celso Lopes, dois dos quais atiraram-no ao chão e se colocaram em cima dele", quando um deles gritou "vais morrer mesmo". Foi atingido por vários pontapés, incluindo na cabeça. Ouviram-se dos agentes expressões como "pretos do caralho, deviam morrer todos, enquanto espancavam os jovens, eram espancados. Celso ainda ouviu um dos agentes a dizer-lhe "a raça africana tem de desaparecer da face da terra (...) deviam ir para o Estado Islâmico". A Flávio, deitado no chão e algemado, diz o MP que o agente Nunes "instigava os colegas para enfiarem um cabo de vassoura no cu".
Tudo isto, agressões e injúrias racistas foram negadas pelos agentes em tribunal, que justificaram os ferimentos dos jovens pela necessidade de terem de usar a "força adequada" porque estes tentaram resistir à detenção.