Cortes só no sector público são ilegais
Ou todos contribuem para o défice ou o esforço exigido apenas aos funcionários da administração pública é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da justiça. Esta é, em síntese, a posição de Paulo Otero, professor catedrático na Faculdade de Direito de Lisboa, que elaborou um parecer para o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). No documento, que foi anexado aos processos avançados pelo SMMP para contestar os cortes salariais, e a que o DN teve acesso, o professor considera que não podem ser apenas e só os funcionários públicos a fazer sacrifícios.
Paulo Otero, professor na mesma faculdade que Jorge Miranda - que fez um parecer para o Governo defendendo a constitucionalidade dos cortes salariais -, até entende que em casos de necessidade, o Estado possa cortar os salários e avançar com medidas de sacrifício. Porém, tal deve ser estendido a todos os trabalhadores, públicos e privados: "A uns é exigido um sacrifício que, em condições de igualdade remuneratória mensal, a outros não é exigido, sem que essa diferenciação de tratamento tenha qualquer justificação aceitável, sabendo-se ainda, por outro lado, que o benefício da redução do défice orçamental a todos vai aproveitar."
Mas, como o Estado não pode cortar directamente os salários dos trabalhadores das empresas privadas, Paulo Otero sugere medidas a nível fiscal que repartissem os sacrifícios e não onerassem apenas os funcionários públicos: "Nada impediria que a redução dos vencimentos de todos os restantes trabalhadores [privados] fosse efectuada através de retenção na fonte pela entidade patronal, impondo a devolução de tais montantes aos cofres do Estado no mês imediatamente seguinte, tal como sucede com o IVA." Porque, segundo o professor catedrático de Direito Constitucional, o que está em causa no Orçamento do Estado para 2011 é "uma solução legal que, envolvendo uma iníqua repartição de encargos públicos, fazendo, arbitrariamente, uns pagar para o benefício de todos, gera uma desigualdade que lesa o princípio da justiça".
Refira-se que, durante a campanha eleitoral para as presidenciais, Cavaco Silva chegou a questionar por que motivo só os funcionários públicos foram afectados pela redução salarial (sendo certo que, como Presidente da República, Cavaco Silva promulgou o Orçamento do Estado para 2011). "Não foram pedidos sacrifícios a outras pessoas com rendimentos muito maiores", apontou o então candidato.
O DN procurou obter junto do Ministério das Finanças uma cópia do parecer pedido pelo Governo ao professor Jorge Miranda, de forma a comparar os argumentos de ambos os catedráticos de Direito. Porém, e apesar de o documento ter sido pago com dinheiros públicos, o ministério de Teixeira dos Santos não o divulga.
No documento entregue ao SMMP, Paulo Otero considera que está ainda em causa o princípio da proporcionalidade - algo contestado por Vital Moreira (ver nestas páginas) -, uma vez que tal princípio "impõe que o recurso a meios lesivos mais graves ou mais intensos só seja desencadeado se se mostrarem esgotadas ou ineficazes as soluções menos gravosas". No caso concreto das reduções salariais aplicadas à administração pública, conclui o professor: "A solução em análise, impondo reduções das remunerações dos trabalhadores, sem esgotar previamente outras vias de prossecução do propósito de consolidação orçamental, mostra-se atentatória do princípio da proporcionalidade."
O SMMP deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa com duas acções para tentar travar os cortes salariais decretados para a administração pública. Os procuradores, porém, estão numa situação delicada - a que o parecer de Paulo Otero procurou dar resposta e esclarecer.