Coronabonds: a Europa numa nova crise, e a solução evidente
Quando questionado sobre o momento mais tenso desta semana passada, repleta de reuniões de alto nível (um Ecofin, um Eurogrupo e um Conselho, tudo por videochamada), um governante lembrou o momento em que o ministro das Finanças holandês, Wopke Hoekstra, fez uma proposta controversa. Foi na reunião da última segunda-feira dos ministros das Finanças (Ecofin), e em cima da mesa estava a proposta de criação de uma solução comum para a dívida europeia (os agora chamados "coronabonds"). Hoekstra pediu à Comissão que fizesse um relatório, no segundo semestre, para avaliar por que alguns países foram capazes de lidar com esta crise e outros não.
"Este foi o momento mais tenso do debate. Muitos países não compreenderam a necessidade de tal pedido", explicou uma fonte do Conselho. No jornal holandês De Volkskrant, este momento foi descrito como se Hoekstra tivesse mostrado "o dedo do meio aos países do sul". O DN pediu ao ministro holandês que explicasse as suas intenções com aquela proposta, que parece ter Espanha e Itália como alvos, mas não obteve resposta.
Em Portugal, após a reunião do Conselho de chefes de Estado, o primeiro-ministro António Costa qualificou a proposta holandesa como "repugnante", "mesquinha" e "uma ameaça para o futuro da UE". Para tornar tudo mais claro, António Costa afirmou, na sexta-feira, sobre as eurobonds: "A União Europeia ou faz o que tem a fazer ou acabará."
Isto parece um déjà vu: no meio de uma crise, a Europa está dividida, polarizada, mostrando como é difícil agir em comum quando é mais necessário. Até agora, os líderes europeus só puderam dar um mandato muito amplo ao Eurogrupo, para apresentar, em duas semanas distantes, uma proposta de linha de crédito de 240 mil milhões de euros, a ser emitida pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla inglesa).
Entretanto, tanto no Conselho como no Eurogrupo a divisão é clara. Países como a Holanda, a Áustria e a Finlândia opõem-se a qualquer tipo de mecanismo comum para evitar uma crise económica e social, que parece ser a mais difícil jamais enfrentada pela UE. A Alemanha está mais próxima deste grupo de países, mas com nuances. E esta é também uma história reveladora sobre como a Europa mudou desde a crise do euro.
Entrevistámos dezenas de economistas, ministros, líderes europeus, e a todos lançámos uma pergunta: existe uma alternativa à dívida comum da UE (eurobonds) para resolver esta crise?
O nosso trabalho mostra que agora há um consenso muito amplo entre os Estados membros (13 dos 18 países do Eurogrupo) que querem começar a emitir dívida comum. Ambos os espetros do pensamento económico concordam agora sobre isso: dos neoliberais aos neoclássicos e neokeynesianos.
Na Alemanha, por exemplo, economistas tão diferentes como Michael Hüther, o responsável do instituto de pesquisa patronal, o líder do IFO, estritamente liberal, Clemens Fuest, e o dirigente do Instituto de Política Marcroeconómica, Sebastian Dullien, uniram forças com outros cinco colegas proeminentes e exigiram "que os países da zona euro emitissem obrigações conjuntas no valor de mil biliões de euros (cerca de 8% do produto interno bruto da zona euro), limitadas a esta crise". Em Portugal, o fundador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, e o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, estão do mesmo lado, e concordam com a ideia.
"Neste momento, nem um único economista pode prever o resultado final e os danos desta crise. É única. Literalmente, segmentos inteiros da economia são parados à força, de cem para zero. Isso pode dar-nos uma razão suficiente para uma medida tão drástica de monetizar a dívida", explica Carsten Brzeski, economista-chefe do ING na Alemanha.
Alexander De Croo é o jovem economista liberal que lidera o Ministério das Finanças do governo belga, tem 44 anos. Responde de forma irónica: "Nos próximos meses seremos todos keynesianos. Estamos todos a permitir subsídios de desemprego e estamos a bombear dinheiro na economia."
Para De Croo, esta crise não tem nada que ver com a "crise do euro" passada: "Esta situação é fundamentalmente diferente na medida em que em todas as discussões anteriores do Eurogrupo e do Ecofin o conceito de risco moral era sempre um problema quando os países pediam um relaxamento ou adiamento dos compromissos do Pacto de Estabilidade e Crescimento, porque não eram capazes de cumprir. Outra grande diferença diz respeito aos países que são atingidos: a Itália é a terceira maior economia, a Espanha a quarta."
Sebastian Dullien, diretor do Instituto Alemão de Política Macroeconómica, e membro do European Council of Foreign Relations, pede eurobonds, e rapidamente. "Obrigações comuns são agora necessárias para distribuir os custos da crise por muitos ombros. Assim, podemos ajudar os países que foram particularmente atingidos e evitar que caiam numa crise de solvência sem culpa própria."
Mas não é assim que os governos holandês e alemão veem o problema. Embora existam diferenças nas suas políticas. Por exemplo: a Alemanha não diz agora - como fez no passado - que se opõe às eurobonds. Prefere dizer que este não é o momento de criá-las.
Após a reunião do Conselho que decidiu dar mais duas semanas ao Eurogrupo para encontrar uma solução, a questão permanece: as eurobonds estão fora de causa? A resposta é não. Mário Centeno, o presidente do Eurogrupo, di-lo de uma forma clara: "Não tiramos opções da mesa, pois não podemos deixar que esta crise de saúde se transforme numa profunda e prolongada crise económica e financeira. Também precisamos de pensar no futuro e preparar as nossas economias para uma estratégia de saída desta crise, um plano para a recuperação. Muito trabalho a fazer nas próximas semanas."
A maioria dos governos leram a declaração do Conselho como um mandato aberto. A força dos que defendem eurobonds é grande. França, Itália e Espanha são três das quatro maiores economias da UE. Nove países assinaram uma carta ao Conselho, na semana passada, exigindo que a UE "trabalhe num instrumento de dívida comum emitido por uma instituição europeia para angariar fundos no mercado na mesma base e para o benefício de todos os Estados membros". A carta foi inicialmente assinada pela França, Itália, Espanha, Portugal, Irlanda, Grécia, Eslovénia, Luxemburgo e Bélgica. Mas, após o conselho, o primeiro-ministro português António Costa garantiu que "outros quatro países aderiram" ao pedido.
Isto seria suficiente, mesmo sem o necessário voto unânime no Eurogrupo, para que estes países começassem a emitir euro ou coronabonds, ao abrigo dos tratados. O mecanismo de "cooperação reforçada" permite a mais de nove países iniciar uma política comum, mesmo que outros Estados se lhe oponham. Algumas políticas comuns importantes - como o acordo de Schengen - começaram assim. É isso que defende, por exemplo, Carsten Brzeski, do ING alemão.
Mas esta estratégia não parece estar em cima da mesa, garantem dois ministros das finanças do Eurogrupo que defendem a criação de eurobonds. A razão é a natureza "divisória" de tal estratégia e os riscos que ela introduziria na zona euro.
Há dois meses seria difícil imaginar como dois economistas com uma perspetiva tão diferente, como Mark Blyth e Guido Tabellini, concordariam sobre uma política de intervenção estatal, como a criação de eurobonds. Mas, agora, os campos antiausteridade e pró-austeridade parecem concordar sobre a importância de mecanismos de dívida comuns.
Blyth é um dos economistas que escreveram uma carta aberta defendendo que a UE precisa de "um instrumento de dívida comum para mutualizar os custos fiscais do combate a esta crise". "Agora é hora de agir. Agora é o momento da solidariedade. Chegou a hora das eurobonds."
Entrevistamos Tabellini, da Universidade de Bocconi, em Itália. O seu argumento é exatamente o mesmo: "A dívida comum é o instrumento certo." "O coronavírus é um evento único na vida com enormes implicações económicas e políticas. Se a zona euro não conseguir alcançar uma maior integração agora, provavelmente nunca alcançará. Muitos eleitores vão tirar as consequências lógicas disso, e todo o projeto do euro pode cair."
A razão pela qual duas visões opostas podem coincidir é simples. Os países da zona euro têm diferentes capacidades para pedir emprestadas as quantidades muito grandes de dinheiro que serão necessárias. "Se os países tiverem de financiar este choque por conta própria, o peso da dívida pode deixar os Estados membros mais fracos numa depressão prolongada, uma vez terminada a emergência sanitária", acrescenta Tabellini.
Grégory Claeys, do Instituto Bruegel em Bruxelas, explica a importância política para a UE: "O que vai acontecer quando a crise acabar e alguns países tiverem uma dívida de 150% do PIB? Portanto, é compreensível que alguns países peçam uma solução consolidada para o problema da dívida."
"O frustrante é que a zona euro como um todo tem a capacidade de financiar isto. A dívida da zona euro em relação ao PIB é de apenas 90%, enquanto os EUA, a China e definitivamente o Japão têm números muito mais elevados. Portanto, como um bloco, temos mais do que espaço suficiente para financiar isto. Os Estados membros não se dão conta do potencial que a zona euro pode ter com uma dívida comum", acrescenta Karel Lannoo, o CEO do Centro de Estudos de Política Europeia.
"Os países do euro devem abrir o caminho para a emissão de obrigações comuns ao volume de 10% do PIB agora. Com isto podemos provavelmente compenar até 75% da perda na procura e no investimento. Isso seria como um seguro inverso. A zona euro não pode definitivamente permitir-se uma repetição das crises da dívida nacional nos países membros mais endividados, como aconteceu nos anos posteriores a 2010", conclui Sebastian Dullien, diretor do Instituto de Política Macroeconómica.
Os ministros das Finanças da zona euro terão outra reunião por videochamada na próxima semana, desta vez com um mandato do Conselho. O acordo será, após semanas de duro debate, um limite de crédito do Mecanismo de Estabilidade Europeu para os Estados de 240 mil milhões de euros. "Este poderá ser o primeiro passo da nossa linha de defesa", explica Mário Centeno.
Mas cobrirá apenas até 2% do PIB de cada país, nas políticas de saúde e nas políticas de emprego necessárias para combater a crise do coronavírus. E ainda há incerteza sobre as condições que os Estados devem cumprir para aceder a esta linha de crédito. As taxas de juros devem ser baixas, mas ainda não há acordo sobre o prazo para o reembolso. Alguns países querem-no por muito tempo (40 anos), outros preferem que seja rápido.
Este é o debate neste momento, tentando evitar outro período de incerteza sobre a reação da UE à crise económica que atingirá vários países europeus, que foram forçados a encerrar uma parte significativa das suas economias para impedir a propagação do vírus - e o colapso dos seus sistemas de saúde com a necessidade invulgarmente elevada de tratamentos de cuidados intensivos.
Isto será, mais do que uma estratégia para resolver os problemas económicos criados por esta crise do vírus, uma tentativa de dissuadir os movimentos especulativos dos mercados.
Para os países que precisam de apoio imediato aos seus Orçamentos, depois de gastar enormes quantias na tentativa de compensar tanto as empresas como os trabalhadores, mais útil do que o crédito do ESM é provavelmente a decisão do Banco Central Europeu de deixar de ter um limite para comprar títulos nacionais. Agora, o BCE está a dizer que o seu "compromisso não tem limite". O limite de 33% existente para comprar dívida dos países europeus está agora em revisão, e isso tem um significado para os mercados: o BCE pode comprar toda a dívida emitida pelos países.
Numa semana frenética, repleta de várias reuniões informais e restritas de ministros das Finanças, em que parecia que estava a caminhar-se para uma solução, o encontro dos chefes de Estado e de governo, na quinta-feira, deitou tudo abaixo e pareceu ser o anticlímax para que se chegasse a uma solução. Mas a urgência é clara.
Investigate Europe é um projeto que junta jornalistas de oito países europeus. Tem o apoio das fundações Cariplo (Milão), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf Augstein-Stiftung (Hamburgo), GLS (Alemanha) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona).