No dia 7 de setembro, o Brasil comemora 200 anos de independência de Portugal. Mas nesse dia, o país estará a 25 dias de eleições escaldantes. E em cima da data em que o selecionador nacional, Tite, vai anunciar a lista de 26 eleitos para um Mundial de futebol que os canarinhos, de jejum há 20 anos, querem mesmo ganhar. Pior: os números da inflação, do desemprego e da fome são dramáticos. As comemorações do bicentenário são uma nota de rodapé nas preocupações dos brasileiros, por tudo isso. E não só: apesar de levantar bandeiras nacionalistas, o governo, liderado por Jair Bolsonaro, tem revelado descaso com a data. .Segundo pesquisa de opinião do instituto Ipespe para o observatório da Federação Brasileira de Bancos, que buscou investigar, ainda em dezembro de 2021, as expectativas para 2022, ouvindo 3000 pessoas nas cinco regiões do país, 59% dos brasileiros não sabiam sequer da comemoração. De acordo com 42% dos entrevistados, são as eleições - não apenas presidenciais mas também legislativas e para os governos estaduais - que mobilizam a opinião pública..Para 35%, as questões da agenda económica, como desemprego, inflação, fome, pobreza e desigualdade, são o tema essencial. Um relatório da ONU divulgado na quarta-feira explica: o Brasil voltou para o Mapa da Fome, com 4,1% da população brasileira em situação de subalimentação entre 2019 e 2022, e a insegurança alimentar atinge mais de 60 milhões de brasileiros - ou seja, cerca de três em cada dez não têm a certeza se vão conseguir fazer a próxima refeição do dia. Em 2015, o país havia saído do Mapa da Fome e tinha 1,7% da população em situação de subalimentação.."Pode-se acaso esperar ânimo celebratório de um povo profundamente marcado pela desesperança, pelo sentimento de fracasso nacional, de crise interminável na economia, na política, na autoestima coletiva?", questionou Rubens Ricupero, ministro das Finanças e do Meio Ambiente no governo de Itamar Franco e ex-embaixador em Itália, em artigo na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais..Para cerca de 20% dos entrevistados na sondagem do Ipespe, entretanto, será o Mundial do Qatar a monopolizar a atenção dos brasileiros em 2022, desejosos de somar mais um aos cinco títulos mundiais. E a pandemia do coronavírus, que matou mais de 672 mil pessoas no país até agora, a crise hídrica e o racionamento de energia e a preservação das florestas também foram temas mais citados pelos entrevistados do que as celebrações dos 200 anos de independência..Há razões históricas para isso, segundo o professor de Economia e de Relações Internacionais Vinícius Vieira. "O 7 de setembro não é tão relevante porque a independência do Brasil foi um pacto entre elites, as agrárias e as comerciais, que culminou com o grito do Ipiranga de Dom Pedro, sem envolver grandes lutas populares", disse ao DN. "Regionalmente, o povo valoriza outras datas que traduzem melhor o ideal da libertação colonial, como a independência de 2 de julho de 1823 da Bahia, a revolução pernambucana de 1817 ou a Inconfidência Mineira, ainda no século XVIII", disse ao DN..DestaquedestaqueRelatório da ONU divulgado na quarta-feira mostra que o país voltou para o Mapa da Fome, com 4,1% da população brasileira em situação de subalimentação.. Mas também há questões conjunturais: "Jair Bolsonaro só defende a sua súcia e não a história a longo prazo". "Não se entende que alguém que se diz tão nacionalista, não tenha abraçado os 200 anos como uma oportunidade de associar o seu nome a Dom Pedro I [Dom Pedro IV, em Portugal], seria até um bom mote de campanha, mas o facto de o Museu do Ipiranga estar em São Paulo, nas mãos, portanto, do governo de João Doria, o seu maior inimigo político à direita, terá contribuído para o desmobilizar"..Segundo o académico, o discurso de 7 de setembro de Bolsonaro, que deve ter a seu lado Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, a quem recusou um encontro entre chefes de estado nas últimas semanas, vai, provavelmente, centrar-se na disputa eleitoral. "Talvez ele associe a data ao 6 de setembro de 2018, quando levou a facada, e tire a carta da manga da ameaça de golpe de estado para atiçar os espíritos mais golpistas dos seus apoiantes e tentar atrapalhar as eleições"..Para Elio Gaspari, colunista de O Globo, "há 200 anos o 7 de Setembro é uma festa de todos". "Não tem o clima festivo do 14 de julho francês nem do 4 de julho americano, mas nenhum governo fez do 7 de Setembro um dia de vulgar mobilização partidária e divisiva". "Bolsonaro, seus ministros da Educação e secretários de Cultura reclamam da influência esquerdista nos currículos. A celebração de personagens e de datas é uma das joias do pensamento conservador (...) mas, como ensinava Sérgio Buarque de Holanda, conservador é uma coisa, atrasado é outra", opinou..Para Ruy Castro, do jornal Folha de S. Paulo, até o coração de Dom Pedro corre risco. "Alguém no Brasil teve a ideia de pedir emprestado a Portugal o coração de Dom Pedro para as supostas comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro. Portugal, temerariamente, concordou, embora deva saber que há tempos o Brasil não tem se destacado no tópico coração. Seu presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, não parece ter um".."Como sabemos", continua o jornalista e escritor, "o patriota Bolsonaro está pouco ligando para o bicentenário. Já anunciou que fará de seu 7 de setembro uma arruaça contra as instituições, numa prévia do golpe contra sua derrota na eleição. Esperam-se tumultos, invasões, quebra-quebras, tiros. E não será surpresa se seus seguidores desfilarem o coração de Dom Pedro num espeto de churrasco"..dnot@dn.pt