Conto de Páscoa
É incrível! Como é que puderam promover a Marina a directora do nosso departamento! Nas entrevistas exploratórias quase todos dissemos à Administração que, das várias alternativas, ela era de longe a pior. Agora vai destruir tudo aquilo que andámos a fazer nos últimos anos e chamar-lhe «reestruturação». São horrores como estes que nos derrotam. Quase me apetece fugir!
Claro que ela é esperta e bem-falante. A sua conversa de eficácia, dinâmica e modernização deve ter convencido as chefias, ansiosas por reformar a empresa e aumentar os proveitos. As nossas críticas até a devem ter ajudado. Agora esta mulher sem escrúpulos, que não olha a meios para conseguir os fins, terá efeitos devastadores. Ela nem sequer faz um esforço para conhecer os valores de competência, excelência e seriedade que sempre nos guiaram. Confunde ponderação com inércia; qualidade com lentidão. Vai ser uma desgraça!
O pior é que a Marina poderá ter sucesso. Quem dobra as regras consegue resultados, algum tempo. Arrasa a confiança, destrói credibilidade, arruína estruturas, acumula desconfianças, mas consegue melhorias nos míopes parâmetros de eficácia com que a Administração da empresa nos avalia. Não me surpreenderá se, em breve, ela for aclamada como excelente directora, pronta para voos mais altos, à custa da respeitabilidade, eficiência e desempenho que sempre cuidadosamente garantimos. A longo prazo a empresa fica a perder, mas ela não liga ao longo prazo. É desesperante!
Bem avisei que isto era possível! Vários colegas diziam que os patrões não iam cair na armadilha, mas sempre achei o perigo bem real. Há meses que aviso, argumento, influencio, mas todos esses esforços foram vãos. Esforços que agora me põem na lista dos indesejáveis. Tanto que rezei para se afastasse de nós este cálice, mas...
De repente, tomo consciência que a minha oração sempre esteve incompleta. Repeti muitas vezes «Pai afasta de mim este cálice», mas nunca acrescentei: «contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua». Esta segunda parte faz toda a diferença. Estava tão seguro da minha opinião que nem me passou pela cabeça a possibilidade de Deus não concordar comigo. A Marina é arrogante, egoísta, atrevida, abusadora, evidentemente má. Mas, pensando bem, isso pouco interessa. Na Páscoa, também o que aconteceu foi horrível e evidentemente injusto. Mas o cálice não se afastou.
Esqueci-me que estava a rezar ao Deus de Jesus, que é muito diferente das nossas ideias. Ele não é o Deus dos finais felizes, mas da ressurreição três dias depois do fim. Ele é o Deus traído, negado, abandonado, morto e sepultado. É o Deus, não só da ponderação e qualidade, mas do amor aos inimigos, dando a outra face. Não é apenas o Deus da competência, excelência e seriedade, mas da renúncia a si mesmo, de tomar a própria cruz e segui-lO. Não é sobretudo o Deus da respeitabilidade, elevação e desempenho, mas dos pobres, dos que choram, dos que têm fome e sede de justiça, dos perseguidos por causa dela.
Sei que Ele ouve sempre a nossa oração, e que faz tudo para o bem. Mas sei também que os seus caminhos não são os nossos. Os caminhos d"Ele são sempre os melhores. Aliás, Ele mesmo é o caminho, a verdade e a vida. Só que é a vida que passa pela morte, a verdade testada no sofrimento, o caminho através da paixão.
Claro! Agora entendo. Estive este tempo todo a ver tudo mal. O Senhor não se interessa pela respeitabilidade, desempenho, confiança e credibilidade. Esses são os míopes parâmetros de eficácia com que eu tenho avaliado o departamento. O que interessa é a bem-aventurança. Não a bem-aventurança já aqui, mas a verdadeira bem-aventurança. Aquela verdadeira bem-aventurança que pode existir já aqui, se eu aqui conseguir ver para lá disto.
Esta promoção da Marina muda radicalmente a minha vida. Vou entrar em período de desolação, catástrofe, ruína. Nos próximos meses assistirei à devastação de tudo aquilo que amo e porque lutei durante tantos anos. Virá sofrimento, miséria, desgraça, talvez a morte do departamento. Mas isso não precisa de aumentar a infelicidade. Pelo contrário, torna a felicidade mais pura e elevada. Porque mesmo assim se pode viver a bem-aventurança. Desde que eu seja manso, misericordioso, puro de coração, pacificador. Estes são os parâmetros de eficácia com que o Senhor avalia o nosso departamento. E esses parâmetros sobem de valor debaixo da devastação. Como a Páscoa nos salva através da paixão de Cristo, o maior crime da humanidade.
Esta é a minha tarefa nos próximos meses, sob a direcção da Marina. Porque aquilo que interessa verdadeiramente não é o que eu amo e construí, mas Aquele que realmente criou tudo aquilo que fizemos. Ele é o verdadeiro Senhor do departamento, e Ele pode refazê-lo à sua vontade. Não à minha. Ele é o Senhor da História, que ressuscita Cristo e cria a Igreja, sem tirar o poder ou sequer beliscar Caifás, Herodes e Pilatos. Aqui, Caifás chama-se Marina.