O paradigma do exercício da atividade médica e, de modo particular, na área da Gastrenterologia, tem vindo a mudar em anos recentes. São várias as dimensões em que esta mudança se faz sentir. Uma das mais evidentes é a crescente conflitualidade médico-legal e as suas implicações a vários níveis..A profissão médica tem vindo a desenrolar-se ao longo da História em contextos muito distintos. As especificidades culturais, sociais, políticas e económicas são distintas ao longo dos tempos. O modelo paternalista do exercício da medicina terminou. A sociedade em geral, e o doente de modo particular, identifica o médico no presente como um profissional que tem uma missão bem definida: não deixar morrer. Como se a morte não fosse inevitável! Nessa linha, exige ao médico que lhe prolongue a vida com qualidade, mas sem admitir a possibilidade de poder sofrer os danos colaterais do processo diagnóstico e/ou terapêutico necessários a esse objetivo. Como se as inovações permanentes da Medicina não trouxessem novos riscos! Como se as prestações dos cuidados médicos não fossem realizadas por seres humanos! Como se a atividade médica não fosse por si só muito complexa e, frequentemente, realizada em ambientes adversos. Como se a atividade médica e a saúde fossem apenas da exclusiva responsabilidade do médico! E não também de outros profissionais de saúde, da administração, dos políticos, da economia, da sociedade e do próprio doente!.O exercício da Gastrenterologia é uma atividade médica. Clínica e técnica. Esta última dimensão tem tido nos últimos anos um desenvolvimento exponencial, de modo particular no campo da endoscopia digestiva. É, no presente, em vários contextos clínicos, uma alternativa à cirurgia. Devemos ter presente os que dizem que a "Medicina costumava ser simples, ineficaz e relativamente segura, e que agora é complexa, eficaz e potencialmente perigosa"..As complicações ou eventos adversos podem ocorrer em qualquer ato endoscópico, diagnóstico ou terapêutico. É um ato médico, sempre invasivo. Nunca um simples exame complementar de diagnóstico. Temos de ter presente que mesmo sem qualquer atropelo da leges artis as complicações e eventos adversos ocorrem. O resultado de um ato médico é sempre influenciado por um conjunto de circunstâncias, entre as quais: idade, comorbilidades, anatomia e fisiologia do doente; desempenho individual do médico, da sua equipa e da instituição; e, ainda, da imprevisibilidade..Por outras palavras, um dano causado a um doente aquando da prestação de cuidados de saúde - leia-se ato endoscópico - não pode ser nunca caracterizado no imediato como má prática médica, erro médico ou negligência. Infelizmente, esta é uma realidade que se tem vindo a estabelecer na sociedade em geral, reforçada por algumas decisões jurídicas dos nossos tribunais a propósito de complicações durante a realização de endoscopia digestiva, de modo particular, na colonoscopia, e que, não raras vezes, se revelam muito questionáveis e, até, contraditórias..Assistimos, assim, a um progressivo aumento da conflitualidade médico-legal em Gastrenterologia. Esta não é positiva para nenhuma das partes. A prestação de cuidados médicos deve ocorrer num ambiente tranquilo e de máxima confiança na relação médico-doente. Esta é a pedra basilar do sucesso em saúde. A sua degradação, além de promover o insucesso, promove a medicina defensiva que, entre outros aspetos negativos, faz disparar os custos económicos em saúde. Os custos do medo são já hoje uma realidade!.Não está em causa, nunca poderá estar, a necessária avaliação da eventual responsabilidade médica, seja esta de natureza civil, penal ou disciplinar. No entanto, não podemos concordar que a complicação que ocorre numa endoscopia digestiva seja, num imediato, apenas avaliada como culpa do médico, ou, ancorada, sem mais, em excertos retirados de alguns dos acórdãos controversos dos nossos tribunais. Na verdade, uma leitura acrítica de várias decisões proferidas por aquelas doutas instâncias sobre a realidade que ora nos debruçamos, pode mesmo ter o efeito nefasto de que o ato endoscópico venha a ser considerado uma atividade médica com obrigação de resultados e não com obrigação de meios. Do mesmo modo, também tema controverso é a aplicação de distintos regimes jurídicos, em caso de responsabilidade civil, conforme a atividade médica é prestada em estabelecimentos públicos ou privados de saúde. Nos primeiros, a relação que se estabelece entre o doente e o hospital é de natureza extracontratual, ao passo que, nos segundos é de natureza contratual. Ora, importa fazer notar que as implicações associadas a estes dois regimes são significativamente distintas..A sociedade em geral, o doente, o médico, a tutela e o Direito, têm em conjunto que contribuir para a diminuição da conflitualidade médico-legal. Este é um problema de todos, em que cada um tem de fazer a sua parte. Esta atitude passa também por cada um perceber as vicissitudes do outro. Não podemos permitir que o ambiente onde se desenvolve a atividade médica, já por si mesmo muitas vezes adverso, se transforme num ambiente de medo e de desconfiança entre doentes e médicos. Caso contrário, as consequências serão catastróficas, com grave comprometimento na qualidade dos cuidados de saúde..A sociedade e o doente têm de perceber que a Medicina não pode nunca garantir um resultado certo. Da mesma forma, o médico deve ter sempre presente que não o pode nunca garantir ao doente, mesmo com o respeito integral e absoluto das leges artis e das normas de segurança. O médico tem de saber comunicar com a sociedade e, de modo muito particular, com o doente. Tem de saber transmitir de uma forma clara, objetiva e entendível pelo doente, os riscos, os benefícios e as alternativas ao ato que se propõe realizar. Ao doente cabe a decisão final..O Direito deverá ter sempre presentes a especificidade e a circunstância do ato médico, com as suas múltiplas variáveis. Destas, como descrito acima, algumas jamais estarão sob um possível controlo do médico, podendo influenciar de modo decisivo o resultado. Acrescentamos ainda a história natural de uma doença, que pode evoluir de modo negativo em minutos, horas ou dias. A Justiça, sem nunca deixar de fazer justiça, deve ser restaurativa e não punitiva. Deve contribuir para a pacificação social e, de modo particular, para a relação de empatia médico doente. Não deve contribuir para a judicialização da Medicina..Por todos os motivos acima descritos, porque os gastrenterologistas querem, de um modo muito ativo, aprender a contribuir para a diminuição da conflitualidade médico-legal, bem como aprender a comunicar melhor com os seus doentes e a conviver com o Direito, a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia organiza, no dia 20 de maio, um curso médico-jurídico para os seus sócios. Com esta iniciativa, queremos também aproximar o mundo jurídico do mundo médico, para que se possam ajudar mutuamente a fazerem-se compreender..Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. Presidente da Comissão Jurídica da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.