Como "purificar" as relações entre política e tecnologia?
Para o melhor ou para o pior, Edward Snowden inscreveu o seu nome na história política do século XXI. Ao divulgar, em 2013, dados de segurança interna dos EUA e, em particular, dos mecanismos de vigilância da National Security Agency (NSA), o ex-funcionário da CIA transformou-se em polo necessariamente polémico de uma questão do nosso mundo global: o cruzamento do exercício do poder com a integração das novas tecnologias de deteção de mensagens. O filme de Oliver Stone, Snowden aponta ao núcleo crítico de tal discussão.
Em boa verdade, mesmo que o discurso de Stone siga noutra direção, o seu filme está longe de ser um mero panfleto. Há nele uma respiração dramática que evoca os modelos clássicos do cinema liberal de Hollywood. Isto sem esquecer que a palavra ("liberal") corre sempre o risco de suscitar muitos equívocos, quanto mais não seja porque o que está em jogo não é uma simples posição política, muito menos partidária. É, isso sim, a tensão que se estabelece entre a ação de um indivíduo e o contexto institucional que o enquadra.
Nesta perspetiva, Snowden pode ser considerado um descendente direto de thrillers das décadas de 60/70, assinados por cineastas como John Frankenheimer, Alan J. Pakula ou Sydney Pollack (recorde-se o caso exemplar de Três Dias do Condor, de Pollack, em que Robert Redford interpretava um funcionário da CIA perseguido pela instituição).
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Por mais desconcertante que isso possa parecer, este retrato de Edward Snowden acaba por ser uma variação sobre o mesmo paradoxo existencial que Stone já encenara em títulos como JFK (1991) ou Nixon (1995). No primeiro caso, da investigação sobre o assassinato de John F. Kennedy emergia a figura do procurador Jim Garrison (Kevin Costner), protagonizando um processo que se vai diluindo na encruzilhada de muitos testemunhos e outros tantos silêncios; no segundo, a revelação dos abusos de poder de Richard Nixon (Anthony Hopkins) acabava por lhe conferir uma perturbante emoção trágica.
Cada espectador reagirá de modo diferente (e com toda a legitimidade) às decisões que levaram Edward Snowden a revelar os documentos que disponibilizou. Seja como for, em defesa do trabalho cinematográfico que temos à nossa frente, importa sublinhar a ambivalência dramática que se instala: no limite, Snowden é uma peça solitária de um aparato global que transfigurou todas as relações humanas. Ele que entrou na CIA "para ajudar o seu país", é, afinal, um filho pródigo de uma paternidade ambivalente, no filme representada pelas personagens do seu austero chefe (Rhys Ifans) e de um sarcástico veterano (Nicolas Cage).
Num plano estritamente ideológico (se é que a fascinante complexidade do filme permite tal separação), podemos questionar Stone pela quase ausência de algum contraponto histórico (que começa, obviamente, na herança do 11 de Setembro). A saber: porque é que a história de Snowden quase não refere a conjuntura geopolítica em que se processa a sua odisseia? O certo é que esse "silêncio" faz parte da visão do mundo de Snowden que, ingenuamente ou não, parece acreditar numa espécie de utópica "purificação" das relações entre política e tecnologia.
Evitando reduzir o mundo a uma dicotomia de "bons" e "maus", o filme de Stone acaba por possuir o valor radical de uma crónica sobre as contradições do nosso tempo. A notável interpretação de Joseph Gordon-Levitt é um espelho cristalino da saga de Snowden. Em boa verdade, ele queria apenas ser ouvido - o filme confirma que o conseguiu.