Como portugueses vão pôr um homem preso num corpo a falar com o filho (e não só)

Consórcio único na Europa está prestes a mostrar ao mundo primeiros produtos no desenvolvimento da IA responsável. Um dos fundadores fala de alguns projetos e do que está por trás da iniciativa.
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Pela primeira vez em anos, Afonso vai poder falar com o pai quase sem limitações. Este, preso no seu corpo pela esclerose lateral amiotrófica, deixou de conseguir comunicar, mas ajudado por hardware e software totalmente criado em Portugal, vai ser possível voltar a ter "voz" e uma personalidade próxima da sua. Com a ajuda da inteligência artificial.

"No Natal deste ano, quando o Afonso for visitar o pai ao Porto, vai entregar-lhe como prenda um device desenvolvido pela Unbabel em parceria com a Fundação Champalimaud e com o Instituto de Sistemas e Robótica" que lhe vai permitir comunicar. A promessa é de Paulo Dimas, vice-presidente para a Inovação da Unbabel, empresa portuguesa que é uma das maiores do mundo em tradução e interpretação automática.

Para conseguir esta interação com o pai de Afonso, que devido à doença está locked-in - é o termo técnico -, foi preciso aplicar conhecimentos de equipas multidisciplinares: enquanto a parte dos modelos de linguagem é a especialidade da Unbabel, o interface com a máquina, por se ter optado por uma técnica não-invasiva - apenas se aplicam elétrodos no crânio do paciente - foi necessário o know-how da Fundação Champalimaud. Depois, houve que criar uma inteligência artificial que tivesse uma "personalidade" o mais próxima possível da do paciente e, para isso, foi necessário fazer um extenso trabalho com a família, entrando em áreas de privacidade, cujos dados foi necessário proteger de forma segura. Estamos a falar da intimidade dos utilizadores. "Felizmente, existe no consórcio um centro de investigação, o Fraunhofer, do Porto, que trabalha em tecnologia de privacidade, pelo que pôde anonimizar toda esta informação e só extrair aquilo que é relevante para a inteligência artificial, retirando toda a informação pessoal" do programa, diz ao DN Paulo Dimas.

Consórcio? Sim. Porque todas estas questões (privacidade, boa utilização da inteligência artificial e sua regulação) são precisamente as maiores preocupações deste especialista, um dos fundadores do Centre for Responsible AI, associação que reúne mais de 20 entidades - startups, grandes empresas, centros de pesquisa quer públicos, quer privados - que "cria sinergias, desde a investigação fundamental, desenvolvida nos nossos centros de investigação, até a produtos concretos", como explica.

A meta, para já, está estabelecida: "Vão ser desenvolvidos cerca de 20 produtos que aplicam inteligência artificial de uma forma responsável em várias indústrias", com um horizonte temporal até 2025.

No âmbito da Saúde, além do projeto do pai de Afonso, há ainda o caso da Sword Health, empresa unicórnio portuguesa, que tem já no mercado "um produto na área da telerreabilitação, mas que está a introduzir inteligência artificial para, por exemplo, as pessoas terem planos de reabilitação personalizados". O sistema passará a "aprender com as características específicas de cada pessoa que está numa fase de reabilitação", diz o líder do consórcio.

Outro produto em desenvolvimento na área da Saúde prende-se com a documentação técnica especializada, chamado Translation for a Clinical Research. "Estamos a trabalhar com a Bial - laboratórios de medicamentos - na área da tradução de conteúdos de pesquisa clínica, que poderão contribuir para acelerar o desenvolvimento de um medicamento e reduzir, depois, o seu risco, que é um dos fatores fundamentais no processo de lançamento de um novo medicamento", diz ao DN Paulo Dimas.

Já no campo da facilitação do trabalho das instituições de prestação de cuidados de Saúde, o grupo Priberam tem já em fase de testes-piloto um programa chamado P-Care, que permite "assistir os hospitais no processo das altas médicas".

Paulo Dimas concretiza: "Usa a Inteligência Artificial para classificar as notas clínicas e, com isso, o médico tem uma ferramenta que pode usar, depois, para tomar uma decisão sobre a alta médica". O sistema já está a ser testado no Hospital de São João, no Porto, e no Hospital da Luz, em Lisboa, que também fazem parte do consórcio.

Estas duas aplicações da inteligência artificial são, aliás, bons exemplos de como esta pode ser utilizada como ferramenta auxiliadora do trabalho especializado no dia a dia, libertando tempo destas pessoas para outras atividades (ler entrevista). Isto, desde que a sua aplicação seja responsável e benéfica.

O consórcio, que inclui ainda empresas como o unicórnio Feedzai (ideóloga do projeto, junto com a Unbabel), a Sonae ou o Grupo Pestana, foi criado há um ano e tem "até ao final do projeto um investimento de 77 milhões de euros", dividido por todos os parceiros, incluindo um incentivo de "55 milhões do PRR", segundo Paulo Dimas.

Todos os participantes são portugueses e "a maioria das pessoas são portuguesas".

Mas numa área como a inteligência artificial, com gigantes como a Microsoft e a Google a investir milhares de milhões, como pode Portugal competir? "Essa foi a principal discussão que nós tivemos, em conjunto com a Feedzai: encontrarmos uma área onde fosse possível criar uma massa crítica de talento para criar os produtos de inteligência artificial da próxima geração. Claro que é impossível competir à escala global em IA em geral. No entanto, focando numa área específica de IA, com as tecnologias e os princípios da IA responsável, acho que vamos conseguir alcançar essa massa crítica", diz.

Até porque, continua, "no final, o que nós queremos é atrair e reter o melhor talento para ficar cá em Portugal". E fazer uma coisa que acredita ser possível, aliás, uma tendência: "Crescer."

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