"Foi uma sucessão de eventos extraordinários", diz Arnaldo Trindade, 84 anos, sentado no mesmo cadeirão amarelo onde costumava passar horas à conversa com Zeca. A peça de mobiliário transitou de casa em casa e hoje está estacionada no escritório de uma habitação da Foz, no Porto. A banda sonora da revolução construiu-se, em boa medida, à volta desta poltrona..Em 1956, Arnaldo Trindade fundou a Orfeu, a editora discográfica que gravou aquilo que o país hoje apelida de cantores de intervenção, mas que insiste em chamar de música popular portuguesa. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho e Fausto, Vitorino e Janita Salomé editaram com ele grande parte das suas obras.."Não haveria 25 de Abril sem a Orfeu", diz em tom de brincadeira, referindo-se ao facto dea senha e a contrassenha da revolução - E depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, e Grândola, Vila Morena, de José Afonso - terem sido gravadas pela sua editora. "Nunca ninguém me poderá tirar o orgulho de ter albergado as canções que nos tornaram a todos livres.".Quis saber quem sou, o que faço aqui?.Eram 22.55 quando os Emissores Unidos de Lisboa passaram E depois do Adeus, a canção que tinha representado Portugal em 1974 no Festival Eurovisão. Nos meses anteriores, tinha estado na berra - mas desde que Paulo de Carvalho tinha ficado no último posto em Brighton ia-se desvanecendo da programação das rádios. "Ainda assim, o MFA correu um grande risco em dar a primeira senha para o arranque de uma revolução com uma música tão popular," diz o fundador da Orfeu..Para o país, estes foram anos dourados na Eurovisão. Nos três anos anteriores, Portugal tinha ficado sempre no top 10 do concurso e as esperanças eram elevadas para 1974. "Travava-se uma verdadeira luta entre as editoras para gravar o vencedor do festival da canção", recorda Arnaldo Trindade, que deu saltos de alegria quando conseguiu o contrato. Aquele podia ser o ano da primeira vitória no Festival Eurovisão da Canção..Só que não..Arnaldo Trindade e Carlos Cruz, o delegado da RTP à Eurovisão, andaram nas semanas anteriores a desdobrar-se para promover a música pelo continente. "O Paulo de Carvalho gravou uma versão em inglês, outra em francês, alemão e italiano. Teve uma receção incrível nestes países todos. Quando chegámos a Brighton, aliás, íamos cheios de confiança.".Nos ensaios, optaram sempre pelo sotaque britânico. Os músicos da orquestra, que tocava para todos os concorrentes, votou E depois do Adeus como a melhor canção - há uma dezena de edições que era ritual os músicos elegerem o seu favorito. "E depois vêm ordens da RTP para que se cantasse em português, quando sabíamos que ela estava nas rádios todas a tocar em inglês.".Arnaldo acredita que havia medo do duplo significado que a letra continha - e que torná-lo global podia ser, aos olhos do regime, um tiro no pé. E depois do Adeus podia, afinal, soar a despedida ao regime e crítica à Guerra Colonial. "Eu estava furioso, ligava para Lisboa a dizer que aquela era uma canção romântica, que não tinha qualquer significado político." Semanas depois, a realidade mostrou-lhe que não tinha razão.."É o sinal definitivo, a partir de agora já não se volta para trás".Às 00.20 da madrugada do dia 25, começaram a ouvir-se as passadas no cascalho. O Limite, programa independente da Rádio Renascença, tocava Grândola, Vila Morena, música emblemática de José Afonso e contrassenha para que a revolução se pusesse em marcha..Em Santarém, o capitão Salgueiro Maia declamava o seu próprio poema: "É o sinal definitivo, a partir de agora já não se volta para trás."."Ao contrário do que toda a gente pensa, essa canção não estava proibida nas rádios. A Censura tinha, por exemplo, ilegalizado Os Vampiros, mas a Orfeu conseguiu editar estes versos do Vila Morena", conta Arnaldo.."Fazê-lo foi, aliás, qualquer coisa de mirabolante. Só que, enfim, mesmo contornando a Censura, o ambiente de autocensura dos meios de comunicação social era mais forte do que isso. Grândola não passava porque as rádios tinham medo de passá-la.".A música tinha sido lançada em 1971, no álbum Cantigas do Maio. "Foi gravada num só dia em Paris, nos Strawberry Studios. Eu tive logo a sensação de que este ia ser um disco histórico. O Zeca estava no topo da carreira, o José Mário Branco era o produtor e a verdade é que, em 1978, a Sociedade Portuguesa de Autores acabou por considerá-lo o melhor álbum de sempre da música popular portuguesa.".Genialidade à parte, tudo o que José Afonso fazia era agora escrutinado milimetricamente pela PIDE e pela Censura. "Se fosse em Lisboa, uma letra que tem o verso 'O povo é quem mais ordena' nunca teria passado. Mas os censores do Porto eram francamente uns labregos, muito fracos culturalmente, e conseguimos dar-lhes a volta com um método fantástico.".Foi José Niza quem levou as letras para aprovação. Era um dos vários músicos que tinham contrato com a Orfeu. "Como ele conhecia o chefe dos censores do Porto dos tempos de universidade em Coimbra, pedi-lhe que fosse falar com ele.".Niza levou um molho de letras de músicas para aprovação, e Grândola ia enfiado a meio do volume. "Então o que eu fiz foi pedir ao Ary dos Santos que escrevesse umas letras absolutamente vergonhosas, contestatárias até ao tutano, que sabia nunca poderem passar.".Ao lerem essas letras, os homens do regime não hesitaram: nem pensar. "E à luz disso uma frase como 'o povo é quem mais ordena' até soava ligeira. O Niza, que era tu cá, tu lá com eles, dizia-lhes: 'Pois, eu percebo que as outras não, agora isto não tem mal nenhum.' E, para nosso espanto, passou.".Grândola foi autorizada. A Emissora Nacional, ainda assim, criaria uma norma interna proibindo a transmissão da cantiga - e as outras rádios abstiveram-se simplesmente de levá-la à antena. Até essa madrugada do "dia inicial, inteiro e limpo", como disse Sophia de Mello Breyner. "A partir daí, tornou-se símbolo de uma revolução que preferiu as flores ao sangue", diz Arnaldo Trindade. "Um hino de liberdade, de Portugal para o mundo inteiro.".Um tempo irrepetível.A Orfeu nasceu em 1956, pelo simples facto de Arnaldo Trindade, filho de um vendedor de eletrodomésticos na rua portuense de Santa Catarina, ter trazido dos Estados Unidos um "gravador de discos da Ampex, com quatro pistons". O nome da discográfica é uma homenagem à revista modernista em que publicaram Pessoa, Amadeo e Mário de Sá-Carneiro..Trindade fazia discos de 78 rotações, esta história começa ainda antes do tempo do vinil (esse funcionava a 33 ou 45). E nem sequer foi pela música que começou. "Tive a ideia de pôr os maiores poetas portugueses a lerem-se a si mesmos." Começou com Miguel Torga - e avançou para José Régio, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro.."E depois, no início dos anos 1960, começou a acontecer uma coisa inacreditável em Coimbra. Havia um grupo de estudantes da cidade que começou a abdicar do fado tradicional, dispensou a guitarra portuguesa, e começou a compor música popular de altíssima qualidade.".Primeiro, Arnaldo reparou em Adriano, contratou-o em 1964. Quatro anos depois era a vez de José Afonso, "o melhor músico que alguma vez conheci". No acordo que celebrava com eles, Trindade exigia duas cláusulas: que todos os anos produzissem um álbum e que todos os anos lhes trouxessem um novo talento para gravar..Zeca Afonso haveria de admitir que foi o ordenado mensal que recebeu na Orfeu que lhe permitiu sobreviver a estabilidade para criar algumas das mais marcantes músicas portuguesas. "Expliquei sempre que isto era um negócio, não era para fazer politiquice. Mas como se travam os génios quando estes têm uma mensagem para passar?".A Orfeu fazia dinheiro gravando discos de ranchos folclóricos e artistas populares, nomeadamente os muito populares Conjunto António Mafra ou um Quim Barreiros em ascensão. Com o tempo viriam nomes como José Cid e os cantores da Eurovisão. Mas Zeca e Adriano trar-lhe-iam Luís Cília, Vitorino e Janita, Sérgio Godinho e Fausto.."O Zeca era uma espécie de papa deles todos, era a inspiração maior." De Coimbra, soprava um ar novo. "E este movimento musical foi um sinal inequívoco. Alguma coisa estava para acontecer. Alguma coisa tinha de acontecer. Que tempo único e que privilégio ter feito parte dele.".O misterioso desaparecimento das gravações originais.Em 1983, Arnaldo Trindade - que já estava a trabalhar em sociedade com outra discográfica, a Rádio Triunfo - vende a Orfeu à Movieplay, propriedade de José Serafim..Os masters originais de todas as gravações viajam para as mãos da empresa lisboeta, que reedita algumas edições, a título esporádico, mas perde a licença por práticas de pirataria..Em 2016, a Antena 1 anuncia que o espólio da Orfeu se encontra em parte incerta. Há remasterizações de discos de José Afonso feitos em 2012 e 2013, mas a digitalização já não é feita com os originais..A notícia aparece quando Fausto Bordalo Dias processa a empresa por dívidas e exige a penhora dos masters originais das suas gravações. A Movieplay responde que "foram vendidas". É certo que, antes de falir, a Movieplay vendeu património a uma empresa americana, mas a morada onde ela está registada é um simples apartado de Delaware..Em 2016, a empresa fica em insolvência por dívidas, algumas delas ao Estado. "Contactei o Ministério da Cultura para que tomassem diligências e arrestassem os originais das obras. Há toda uma parte da história musical portuguesa que está em parte incerta", diz agora Arnaldo Trindade..O DN contactou o Ministério da Cultura para perceber que diligências foram feitas nos últimos três anos, mas não obteve respostas. E contactou também a família Serafim, proprietária à data de insolvência do acervo da Orfeu, que se limitou a dizer que "os masters estão perdidos mas não desaparecidos" e escusou-se a mais explicações..Uma boa parte da história portuguesa da segunda metade do século XX conta-se no catálogo da Orfeu. "É muito importante que estas canções tenham sido a banda sonora do dia em que nos tornámos livres. Deveria ser um desígnio nacional recuperar a memória original da música da nossa liberdade."