Como é ser editora de livros em Damasco?

Samar Haddad, de 57 anos, é editora de livros em Damasco, na Síria, onde vive até hoje apesar da guerra. Há sete anos que não viaja dentro do seu país. Só para fora. Vai a feiras do livro no estrangeiro. Mas para isso usa o passaporte canadiano que tem, porque, assim, diz "não me olham como se fosse terrorista"
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Tal como o titã grego Atlas, que dá nome à sua editora de livros, a Atlas Publishing, Samar Haddad carrega sobre os ombros um peso considerável. Não o do mundo todo. Mas o de um negócio de família herdado do pai. Que a obrigou a voltar do Canadá, para onde tinha imigrado, para viver em Damasco, na Síria. Onde se mantém até hoje. Apesar da guerra.

"Quando fui de Damasco para Montreal, no Canadá, em 1991, já era formada em Literatura Francesa. Lá fiz depois um Master em Businness Administration. Entretanto o meu pai ficou doente, a minha irmã também é doente, o meu irmão vive no Golfo. Tive que voltar. Em 2000 fui para Damasco. Não foi fácil voltar após dez anos no Canadá. Foi um choque. O meu pai era muito conhecido no mundo árabe e então herdei o negócio e fiquei com o peso da família sobre os ombros. Vinha só por um ano. Mas depois fui ficando. E fiquei. Não saí de Damasco. Sacrifiquei-me. Mas não lamento, Isso define aquilo que sou hoje", disse ao DN Samar Haddad, editora síria, de 57 anos, na Feira do Livro de Frankfurt.

O logótipo da sua editora é, aliás, um Atlas que segura, na mão direita, um globo terrestre, na esquerda, um livro. "No início publicava autores locais, jovens, publicava cerca de 10 a 15 livros por ano. Eram autores de toda a Síria, Depois passámos também para autores palestinianos, libaneses, dos Emirados Árabes Unidos. O máximo de livros que publicava por ano eram 20, pois apostava muito na qualidade, mais do que na quantidade. Fazia tudo com calma, a tradução, o design, para que o produto final fosse apelativo para o leitor a todos os níveis". Depois veio a guerra. Muito mudou.

"No primeiro ano parámos tudo pois não sabíamos o que futuro nos reservava. Não fui a feiras do livro. Aceitei um trabalho na mesma área em Beirute, no Líbano, pois precisava de ter um salário. Lá fiquei durante dois anos. Mas depois vi que a capital libanesa era uma cidade muito cara, então voltei a Damasco, em 2016, onde tinha a minha irmã". Mas Beirute funciona até hoje com a sua base de retaguarda. Lá tem o seu grande armazém. Lá tem também licença de impressão. "Muitos livros não passariam na censura na Síria. Alguns são de autores sírios. São publicados em todo o lado menos na Síria. Claro que esses autores já não estão na Síria. E os seus livros não são só sobre política. Mas sobre outros temas, como, por exemplo, a vida sexual do profeta Maomé. Tem sete volumes e mostra, como naquele tempo, o profeta lidava com o sexo de forma natural", conta Samar Haddad, que apesar de ter sido educada como católica, se descreve hoje em dia como secular. "A religião não define a minha vida. A minha irmã, sim, é muito religiosa, vai à igreja todos os domingos. Eu gosto de questionar".

Neste momento, sublinha a editora de livros, há "cada vez mais mulheres de hijab em Damasco. Antes não era assim. Agora temos que ter mais cuidado com o que vestimos. O Estado Islâmico não conquistou Damasco, é verdade, mas as pessoas pensam que se forem mais conservadoras a nível religioso estão mais protegidas dos ataques e mais perto de Deus". Damasco, o reduto do regime do presidente Bashar al-Assad, nunca caiu, mas os bombardeamentos andaram perto. "Não sinto medo dos bombardeamentos. Agora já não. Mas antes tinha medo de sair de casa. A minha irmã era mais corajosa. Ia ao mercado. Eu não saía. Especialmente à noite. Às vezes tenho uma reunião por Skype, porque eu faço tudo por internet, depois falha a luz. Às vezes não há água. Passo metade do dia a tentar resolver estes problemas. É muito cansativo. Depois as casas são muito antigas. Após quase anos de guerra, os prédios abanam, tenho um fragmento de bala numa das janelas".

Antes da guerra, Samar Haddad viajava por toda a Síria, algo que não acontece há sete anos. "Viajava por todo o país, conhecia bem todas as cidades, era um país lindo. É triste perdermos os nossos monumentos culturais. Ver museus pilhados e destruídos. Nunca mais viajei dentro da Síria. Não era seguro. De todo. Havia snippers por todo o lado". Apesar de tudo, depois de reconhecer que precisava trabalhar melhor a cadeia de distribuição da sua editora, Samar reconheceu que tinha que viajar mais, sim, mas para fora de território sírio. Para o estrangeiro. E assim foi. "Comecei a ir às feiras do livro. Tive acesso a várias bolsas de tradução. Trabalho muito com o Goethe Institut por exemplo. Traduzimos e publicamos ficção. Tenho um livro por exemplo de um jornalista espanhol, sobre Pep Guardiola, que tem 400 páginas. Adoro futebol, jogava, quando era pequena. Adoro desporto, em geral, vejo-o como cultura, gosto de festa nos estádios, todos a torcer pela mesma equipa. Durante 90 minutos as pessoas podem ser amigas, mesmo que sejam inimigas durante aquele tempo estão a torcer pela mesma equipa".

Samar é também coordenadora da secção de árabe da Alliance International des Éditeurs Indépendants com sede em Paris. Normalmente tem reuniões pela internet - quando a há - trata por aí a maior parte dos assuntos. Os seus colaboradores, dos tradutores aos designers, vivem todos no estrangeiro, em países como os EUA, por exemplo. "Estão fora, mas são sírios, faço questão de trabalhar com sírios. De lhes dar trabalho. De os ajudar", sublinha, contando que, de cada vez que sai da Síria, o que lhe vale é o apoio das organizações que a convidam e o seu passaporte canadiano. "De Damasco atualmente não se vai para lado nenhum. De Beirute é que voo para todo o lado. Vou de táxi entre uma cidade e outra". A viagem é de quatro horas para lá e para cá e custa, ida de volta, 200 dólares (cerca de 180 euros).

"A minha família é originária da Palestina. A minha mãe é de Akka. O meu pai de Safad. Conheceram-se em Damasco. A Síria nunca me deu passaporte. O que tínhamos era documentos de viagem da Síria para palestinianos. Foi por isso que imigrei para o Canadá. Para alterar a minha situação em relação aos documentos", resume a editora de livros, que no início de outubro conversou com o DN na Feira do Livro de Frankfurt na Alemanha. Exemplo de força, coragem e determinação, Samar mostra como se carrega o peso do mundo sobre os ombros sem perder o sentido de humor: "Como canadiana, com o passaporte canadiano, sou respeitada, em todo o lado, passo e não me olham como se fosse terrorista". E ri. Encolhendo os ombros.

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