Como é que se comem elefantes? Às fatias

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É hora de repensar, transformar e reiniciar o turismo com segurança. (...) o setor do turismo pode proporcionar empregos dignos, ajudando a construir economias e sociedades resilientes, sustentáveis, com igualdade de género e inclusivas, que funcionem para todos. Isso significa ação direcionada e investimento para mudar para o turismo verde - com setores de alta emissão, incluindo transporte aéreo e marítimo e hospitalidade, caminhando para a neutralidade de carbono" (António Guterres. 27/9/2021, Dia Mundial do Turismo).

Claro que turismo e viagens vão retomar, com toda a força. A repressão sanitária das viagens só fez que a vontade crescesse. E o mundo está à nossa espera. Wanderlust ou o desejo incontrolável de viajar, como já escrevi em fevereiro de 2021. O ponto é se voltamos ao ponto em que estávamos em 2019, antes da hecatombe, ou se algo vai mudar.

Há várias reflexões sobre as tendências para o futuro, e é muito prematuro adivinhar quais e quantas se irão consolidar, mas há duas delas, pelo menos, que já vinham de trás e que aceleraram, acentuaram e são irreversíveis: a sustentabilidade e a digitalização. Sobre esta última não há muitas dúvidas: maior uso da automação e de meios de pagamento sem contacto; investimento em experiências virtuais e disponibilização e partilha de informação em tempo real, de vital importância na gestão da carga e de tráfego e acesso a equipamentos, turísticos, culturais, etc. Sobre a sustentabilidade, isso já são outros quinhentos... Se o tema está na agenda de todas, rigorosamente todas, as instâncias - mundiais, europeias, nacionais, corporativas, empresariais e cada vez mais nas nossas agendas individuais -, a sua concretização e planos de ação têm distintos matizes, métricas, objetivos. Tantos quanto são os desdobramentos da sustentabilidade.

É enorme o peso que o turismo tem no mundo, pelo que contribui para a riqueza dos países, para o emprego, para a manutenção do património natural e cultural, um agente para a paz e entendimento, tendo um papel fundamental para a concretização de alguns dos objetivos de desenvolvimento sustentável, especialmente para os ODS 1 (erradicar a pobreza); 5 (igualdade de género) ; 8 ( trabalho digno e crescimento económico) e 10 (reduzir as desigualdades).

Mas tem, como todas as atividades humanas, impacto nas alterações climáticas. Em maio de 2018, a revista Nature Climate Change publicou um estudo exaustivo realizado na Universidade de Sydney e que envolveu 160 países, que concluiu que a pegada ecológica do turismo representa 8% do total das emissões de carbono no mundo. Mas o que significa isto?

Tenho para mim que é preciso entrar nos detalhes para se poder concluir, como os ditos investigadores, que tornar o turismo mais sustentável é não apenas urgente, mas possível. E entrar nos detalhes quer dizer "fatiar o elefante": que parte das emissões é devida a cada uma das componentes do ecossistema do turismo?

É que se olharmos para os números na perspetiva do rating dos setores piores poluidores, basicamente concluímos que o turismo em si representa muito pouco! Com efeito, três quartos das emissões vêm do setor da energia (produção de eletricidade, calor e transporte); 18,4% de produção agrícola, florestação e utilização da terra; 5,2% da produção industrial e 3,2% de desperdício e perdas (fonte: Our World in Data) .

Que papel pode e deve o turismo desempenhar, como consumidor e gerador de impactos em todos setores? Devemos começar pelo transporte aéreo, que tem a maior "fatia do queijo" dos produtores de CO2? Que consequências terão sobre os destinos que dependem 100% desse meio de transporte, medidas punitivas/restritivas do mesmo? Ou vamos focar a atenção no segmento do alojamento, que confia na energia para assegurar que os quartos se mantêm na temperatura ideal em climas quentes ou frios? Ou ainda restringir/controlar a origem, o tipo e a quantidade da comida que é disponibilizada aos hóspedes?

Em suma: as emissões vêm de vários setores de atividade, e são necessárias múltiplas soluções para descarbonizar a economia. Não há por isso uma solução mágica, simples, única. E sim, o turismo tem um papel fundamental para transformar a nossa economia e as nossas sociedades, mas as medidas têm de ser coordenadas e ponderadas. Há muito boas iniciativas e exemplos. O Next Generation EU é sem dúvida um ótimo quadro de trabalho. Haja capacidade de o concretizar e multiplicar, em ritmo acelerado, sem deitar fora a criança com a água do banho.

VP executiva da AHP - Associação da Hotelaria de Portugal

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