Como a personalidade pode ser influenciada por aquilo que acontece nos intestinos

Eixo intestino-cérebro ganha relevo na ciência. No Instituto i3S, no Porto, estuda-se a relação entre o microbioma intestinal e os traços de personalidade.
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Se tem uma tendência para estados de alma mais deprimidos, comportamentos ansiosos ou, pelo contrário, irradia boa disposição ou controla facilmente as emoções, saiba que isso talvez se fique a dever, em parte, ao seu microbioma intestinal.

Até há bem pouco tempo, a ideia de que algumas doenças mentais ou simples traços de personalidade pudessem estar relacionadas com o que se passa nos nossos intestinos poderia parecer um absurdo ao comum dos mortais, mas os avanços da ciência têm deixado essa relação cada vez mais demonstrada. A influência do ecossistema intestinal na saúde e bem-estar é de tal forma evidente, aliás, que os transplantes de massa fecal são já uma estratégia terapêutica utilizada em algumas patologias (ainda raros).

No Instituto de Investigação e Inovação em Saúde i3S, no Porto, uma equipa liderada pela investigadora Benedita Sampaio-Maia estuda essa relação entre o microbioma intestinal e as características de personalidade e lança agora um apelo à comunidade para participar numa iniciativa que visa desvendar um lado ainda oculto das neurociências. O objetivo, diz, é "relacionar perfis microbianos, nomeadamente a diversidade e a quantidade relativa de diferentes grupos de bactérias que habitam no nosso intestino, com traços da nossa personalidade".

O nosso corpo serve de habitat a milhões de microrganismos. No intestino, habitam diferentes bactérias, fungos e vírus que compõem o chamado microbioma intestinal. Aí, eles encontram o ambiente propício à sua sobrevivência e, se mantidos num equilíbrio saudável, proporcionam também uma série de benefícios ao organismo, desde o combate a outros tipos de microrganismos que causam doenças até à produção de nutrientes (como vitaminas).

Esta "caixa de Pandora", como descreve Benedita Sampaio-Maia, foi aberta pela comunidade científica a partir da primeira década deste século, quando o avanço das tecnologias à disposição da investigação permitiu perceber que "a quantidade e a diversidade dos microrganismos que colonizam o homem é muito maior do que se conhecia até então". Ora, esta descoberta abriu portas quase a uma nova ciência, "foi uma revolução na microbiologia associada ao homem e à doença humana".

Passo a passo, foi-se descobrindo que os microrganismos que habitam o nosso corpo estão relacionados com estados inflamatórios e com doenças crónicas como a obesidade, a diabetes, a síndrome do intestino irritável, entre muitas outras. Mais recentemente, começaram a ficar demonstradas também ligações a várias doenças mentais e do neurodesenvolvimento, destacando um novo conceito estrela na ciência: o eixo intestino-cérebro.

"Verificou-se, por exemplo, que em crianças com autismo havia alterações desse perfil microbiano. Mas também em doenças como Alzheimer ou depressão começam a surgir evidências dessa relação", diz a investigadora do i3S e da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto (FMDUP). Uma descoberta que vem alterar o padrão de investigação sobre a saúde mental? "Não diria alterar, porque há outros mecanismos importantes a influir nessas doenças, além do microbioma, mas vem acrescentar dados muito importantes à investigação", destaca.

Além destas relações já estabelecidas, surgem agora novas hipóteses, como a que a equipa do i3S quer esclarecer neste projeto que será desenvolvido ao longo de quatro anos : "Como as diferenças individuais na personalidade estão associadas a diferenças na função cerebral e como as bactérias do intestino conseguem comunicar com o cérebro através do eixo bidirecional intestino-cérebro, o microbioma pode estar relacionado com diferenças de personalidade", sustenta Carolina Costa, que também integra a equipa.

A ambição deste projeto vai mais além do estudo do microbioma intestinal e "vai contemplar também o microbioma oral, o urinário e o sanguíneo", revela Benedita Sampaio-Maia, sublinhando a importância de se conhecer mais sobre esses ecossistemas ainda não tão estudados quanto o intestinal e apontando, por exemplo, que "no caso do microbioma oral já se encontraram também correlações com a doença de Alzheimer".

Para isso, a equipa apela à participação da população adulta, com a maior diversidade possível de personalidades na amostra. Os voluntários "serão submetidos a um conjunto de questionários para avaliar a personalidade" e deverão fornecer amostras clínicas de fezes, urina, saliva e sangue. Os interessados podem inscrever-se em https://microbia.i3s.up.pt

Num futuro próximo, a regulação microbiana intestinal pode vir a ser "uma terapêutica usada para melhorar quadros de saúde mental" fazendo "reduzir a dependência" de outras vias farmacológicas, como o uso de antidepressivos, nota Benedito Sampaio-Maia.

Para já, sabe-se que a adequação de hábitos alimentares e o uso de produtos bióticos (pró, pré e pós-bióticos) contribuem para essa regulação. Mas há outras estratégias terapêuticas, como a terapia fágica (vírus bacteriófagos, que matam bactérias) ou "os transplantes de massa fecal", diz a investigadora, já usados em alguns casos, como o de "pessoas colonizadas por um microrganismo muito resistente, que é o Clostridioides difficile".

rui.frias@dn.pt

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