Catarina, chamemos-lhe assim, cresceu numa instituição. Mas, nos últimos anos, já não queria lá estar. Tinha-se apaixonado. Ela era ainda muito nova, deveria ter uns 15 anos, ele era bastante mais velho, teria quase 30. Mas só pensavam em estar juntos. "Passava a vida a fugir, meia volta aparecia aí. E depois vinham buscá-la." Até que fez 18 anos e já não a vieram buscar. Catarina instalou-se numa barraca junto ao bairro das Abelheiras, em Agualva-Cacém, muito perto da casa onde o seu namorado morava com a mulher e o filho. Ele mudou-se para a barraca, ou, pelo menos, era lá que passava a maior parte do tempo. Era uma situação complicada, mas eles eram namorados, isso era claro para todos os que os conheciam. E, até quarta-feira, pareciam estar bem: mas nessa noite, provavelmente enquanto ela estava a dormir, ele entornou-lhe combustível nas mãos e ateou-lhe fogo. Catarina, que tem agora 19 anos, está internada na Unidade de Queimados do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, e o namorado de 33 anos, foi detido pela PSP do Cacém.."Ainda ontem à noite ela estava ali no café", conta uma vizinha, ainda incrédula com a notícia que acabou de ver na televisão. À porta do Centro Comercial Júpiter, junto à papelaria que acabou de ser assaltada (aconteceu à hora do almoço, quebraram a fechadura e levaram dinheiro, tabaco e raspadinhas), alguns vizinhos tentam perceber os acontecimentos da noite. O alerta foi dado por volta da meia-noite e meia, conta ao DN o comandante dos Bombeiros Voluntários de Agualva-Cacém, Francisco Rosado, cujo quartel fica a umas centenas de metros do local do incidente. "O que nós achamos que aconteceu é que ele lhe pôs diluente nas mãos quando ela estava a dormir e lhe pegou fogo. A rapariga acordou e saiu de casa aos gritos, com as dores, e foi com as mãos que queimou o tórax e a cara. Quando chegámos lá, ela estava agachada, com as mãos dentro de um balde de água que alguém lhe tinha dado." As dores deveriam ser insuportáveis..Os bombeiros tinham acionado o CODU - Centro de Orientação de Doentes Urgentes e pouco depois chegou uma VMER (viatura médica de emergência e reanimação) do INEM que socorreu Catarina e a transportou para o Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. "A equipa especial veio do Hospital Fernando Fonseca [Amadora-Sintra]. Puseram-na em coma induzido e entubaram-na, foi assim que foi transportada para São Francisco Xavier e, depois, de helicóptero para Coimbra", relata o comandante dos bombeiros, sublinhando a eficiência de todas as equipas envolvidas da operação. "E também da polícia, que imediatamente encontrou o sujeito e o prendeu", diz.."Após diligências investigatórias imediatas, desencadeadas num quadro de absoluta urgência face aos perigos que emanavam do cenário retratado, foi possível intercetar o suspeito nas imediações do local da ocorrência, encontrando-se deitado no solo a tentar passar despercebido aos polícias da PSP", explicou a PSP num comunicado. O sujeito, o namorado, foi encontrado "numas hortas ali perto" e foi imediatamente detido. "De realçar", sublinha o comunicado, "que o mesmo não prestou qualquer assistência à vítima tendo abandonado o local sem contactar qualquer meio de socorro"..A descrição deixa os vizinhos surpreendidos. "Ela gostava tanto dele", diz um. "Ele também gostava muito dela", diz outra. O que pode ter acontecido para que a discussão fosse assim tão grave? De factos concretos pouco se sabe. O homem fazia trabalhos como servente e tinha outros biscates, Catarina não trabalhava. Ele continuava a ver o filho e "parecia" um pai atencioso. "Ela era uma rapariga muito educada", garante um dos vizinhos. Num dia soalheiro como este, Catarina gostava de se sentar no muro ou num bancos da rua, à sombra. Conversava com toda a gente, ia até ao café e talvez bebesse uma cerveja. "Andava por aí." A polícia diz que já tinha havido outros dois episódios de violência doméstica entre o casal - estes vizinhos não sabem de nada. "Ele não é má pessoa, talvez bebesse um bocado, a bebida às vezes transforma as pessoas... Quem havia de dizer?".No restaurante Avenida ninguém sabe nada. Na padaria Trigo d'Aldeia ouviram contar, mas não sabem quem era o casal. Vamos pela Rua de Mira Sintra afora até à Rua da Hera, os prédios altos dão lugar a pequenas casas com portões enferrujados e quintais com roupa estendida. Santo António continua a abençoar uma fonte de onde há muito não escorre água. Um gato dorme ao sol. Ouvem-se passarinhos. Depois acaba-se o alcatrão e o caminho é de terra batida até ao vale verdejante e cheio de árvores. Ali, por entre um e outro aglomerado de prédios, uma densa vegetação esconde um grupo de barracas. Quase só se veem os telhados de zinco.."Na nossa freguesia não temos bairros de barracas", diz-nos, perentória, a assessora da Junta de Freguesia de Agualva-Cacém. E, no entanto, era numa daquelas barracas, em condições muito precárias, que morava Catarina. Foi dali que saiu, em chamas, no meio da noite. "Tão nova... não se deseja uma coisa destas a ninguém, mas a uma rapariga assim nova ainda menos...".Violência doméstica: governo reforça orçamento para combater o crime.Este é mais um caso de violência doméstica em Portugal, país onde, durante 2019, 35 pessoas morreram vítimas destes crimes. Ao todo, 26 mulheres adultas, duas crianças e sete homens foram assassinados às mãos de companheiros, ex-companheiros ou familiares. Isto representa um aumento em relação a 2018 quando 28 pessoas perderam a vida em contexto de violência doméstica. Neste ano já houve pelo menos duas vítimas mortais..Por outro lado, de acordo com os últimos dados estatísticos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no último ano, 949 arguidos ficaram sujeitos a vigilância eletrónica por crimes de violência doméstica. Isto significa que a vigilância eletrónica associada aos crimes de violência doméstica aumentou 33,66%, com mais 239 casos em execução do que em 2018..Por tudo isto, no final de janeiro, o governo anunciou o lançamento de um concurso para alargar a todo o país a rede de apoio às vítimas de violência doméstica. "Temos hoje 818 concelhos na rede, com estruturas de atendimento a vítimas de violência doméstica; temos 233 respostas e estruturas face às 177 existentes em 2015 e com o concurso lançado permitiremos cobrir todo o território nacional, sendo certo que a cobertura hoje está nos 71%", afirmou a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva no Parlamento, onde foi ouvida no âmbito do debate na especialidade do Orçamento do Estado para 2020. As regiões onde o governo pretende reforçar a resposta são, sobretudo, a Área Metropolitana do Porto, o Oeste, Coimbra e a serra da Estrela..Foi também anunciado um reforço orçamental na prevenção e no combate à violência doméstica: em 2020, a fatia do Orçamento do Estado destinada a este tema é de 20,3 milhões de euros - uma verba que, segundo a governante, representa um crescimento de 25% desde 2017..Entre as medidas previstas estão 3500 equipamentos de teleassistência para vítimas, um conjunto de meios técnicos que asseguram uma forma específica de proteção, integrando respostas que vão do apoio psicossocial à proteção policial, por um período não superior a seis meses, a menos que isso seja considerado necessário, e que pretende também diminuir o risco de agressões reincidentes. A ministra adiantou que o governo está a trabalhar na criação da base de dados com informações oficiais sobre violência doméstica, ressalvando que é um trabalho "complexo" que envolve a integração de diferentes bases de dados.
Catarina, chamemos-lhe assim, cresceu numa instituição. Mas, nos últimos anos, já não queria lá estar. Tinha-se apaixonado. Ela era ainda muito nova, deveria ter uns 15 anos, ele era bastante mais velho, teria quase 30. Mas só pensavam em estar juntos. "Passava a vida a fugir, meia volta aparecia aí. E depois vinham buscá-la." Até que fez 18 anos e já não a vieram buscar. Catarina instalou-se numa barraca junto ao bairro das Abelheiras, em Agualva-Cacém, muito perto da casa onde o seu namorado morava com a mulher e o filho. Ele mudou-se para a barraca, ou, pelo menos, era lá que passava a maior parte do tempo. Era uma situação complicada, mas eles eram namorados, isso era claro para todos os que os conheciam. E, até quarta-feira, pareciam estar bem: mas nessa noite, provavelmente enquanto ela estava a dormir, ele entornou-lhe combustível nas mãos e ateou-lhe fogo. Catarina, que tem agora 19 anos, está internada na Unidade de Queimados do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, e o namorado de 33 anos, foi detido pela PSP do Cacém.."Ainda ontem à noite ela estava ali no café", conta uma vizinha, ainda incrédula com a notícia que acabou de ver na televisão. À porta do Centro Comercial Júpiter, junto à papelaria que acabou de ser assaltada (aconteceu à hora do almoço, quebraram a fechadura e levaram dinheiro, tabaco e raspadinhas), alguns vizinhos tentam perceber os acontecimentos da noite. O alerta foi dado por volta da meia-noite e meia, conta ao DN o comandante dos Bombeiros Voluntários de Agualva-Cacém, Francisco Rosado, cujo quartel fica a umas centenas de metros do local do incidente. "O que nós achamos que aconteceu é que ele lhe pôs diluente nas mãos quando ela estava a dormir e lhe pegou fogo. A rapariga acordou e saiu de casa aos gritos, com as dores, e foi com as mãos que queimou o tórax e a cara. Quando chegámos lá, ela estava agachada, com as mãos dentro de um balde de água que alguém lhe tinha dado." As dores deveriam ser insuportáveis..Os bombeiros tinham acionado o CODU - Centro de Orientação de Doentes Urgentes e pouco depois chegou uma VMER (viatura médica de emergência e reanimação) do INEM que socorreu Catarina e a transportou para o Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. "A equipa especial veio do Hospital Fernando Fonseca [Amadora-Sintra]. Puseram-na em coma induzido e entubaram-na, foi assim que foi transportada para São Francisco Xavier e, depois, de helicóptero para Coimbra", relata o comandante dos bombeiros, sublinhando a eficiência de todas as equipas envolvidas da operação. "E também da polícia, que imediatamente encontrou o sujeito e o prendeu", diz.."Após diligências investigatórias imediatas, desencadeadas num quadro de absoluta urgência face aos perigos que emanavam do cenário retratado, foi possível intercetar o suspeito nas imediações do local da ocorrência, encontrando-se deitado no solo a tentar passar despercebido aos polícias da PSP", explicou a PSP num comunicado. O sujeito, o namorado, foi encontrado "numas hortas ali perto" e foi imediatamente detido. "De realçar", sublinha o comunicado, "que o mesmo não prestou qualquer assistência à vítima tendo abandonado o local sem contactar qualquer meio de socorro"..A descrição deixa os vizinhos surpreendidos. "Ela gostava tanto dele", diz um. "Ele também gostava muito dela", diz outra. O que pode ter acontecido para que a discussão fosse assim tão grave? De factos concretos pouco se sabe. O homem fazia trabalhos como servente e tinha outros biscates, Catarina não trabalhava. Ele continuava a ver o filho e "parecia" um pai atencioso. "Ela era uma rapariga muito educada", garante um dos vizinhos. Num dia soalheiro como este, Catarina gostava de se sentar no muro ou num bancos da rua, à sombra. Conversava com toda a gente, ia até ao café e talvez bebesse uma cerveja. "Andava por aí." A polícia diz que já tinha havido outros dois episódios de violência doméstica entre o casal - estes vizinhos não sabem de nada. "Ele não é má pessoa, talvez bebesse um bocado, a bebida às vezes transforma as pessoas... Quem havia de dizer?".No restaurante Avenida ninguém sabe nada. Na padaria Trigo d'Aldeia ouviram contar, mas não sabem quem era o casal. Vamos pela Rua de Mira Sintra afora até à Rua da Hera, os prédios altos dão lugar a pequenas casas com portões enferrujados e quintais com roupa estendida. Santo António continua a abençoar uma fonte de onde há muito não escorre água. Um gato dorme ao sol. Ouvem-se passarinhos. Depois acaba-se o alcatrão e o caminho é de terra batida até ao vale verdejante e cheio de árvores. Ali, por entre um e outro aglomerado de prédios, uma densa vegetação esconde um grupo de barracas. Quase só se veem os telhados de zinco.."Na nossa freguesia não temos bairros de barracas", diz-nos, perentória, a assessora da Junta de Freguesia de Agualva-Cacém. E, no entanto, era numa daquelas barracas, em condições muito precárias, que morava Catarina. Foi dali que saiu, em chamas, no meio da noite. "Tão nova... não se deseja uma coisa destas a ninguém, mas a uma rapariga assim nova ainda menos...".Violência doméstica: governo reforça orçamento para combater o crime.Este é mais um caso de violência doméstica em Portugal, país onde, durante 2019, 35 pessoas morreram vítimas destes crimes. Ao todo, 26 mulheres adultas, duas crianças e sete homens foram assassinados às mãos de companheiros, ex-companheiros ou familiares. Isto representa um aumento em relação a 2018 quando 28 pessoas perderam a vida em contexto de violência doméstica. Neste ano já houve pelo menos duas vítimas mortais..Por outro lado, de acordo com os últimos dados estatísticos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no último ano, 949 arguidos ficaram sujeitos a vigilância eletrónica por crimes de violência doméstica. Isto significa que a vigilância eletrónica associada aos crimes de violência doméstica aumentou 33,66%, com mais 239 casos em execução do que em 2018..Por tudo isto, no final de janeiro, o governo anunciou o lançamento de um concurso para alargar a todo o país a rede de apoio às vítimas de violência doméstica. "Temos hoje 818 concelhos na rede, com estruturas de atendimento a vítimas de violência doméstica; temos 233 respostas e estruturas face às 177 existentes em 2015 e com o concurso lançado permitiremos cobrir todo o território nacional, sendo certo que a cobertura hoje está nos 71%", afirmou a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva no Parlamento, onde foi ouvida no âmbito do debate na especialidade do Orçamento do Estado para 2020. As regiões onde o governo pretende reforçar a resposta são, sobretudo, a Área Metropolitana do Porto, o Oeste, Coimbra e a serra da Estrela..Foi também anunciado um reforço orçamental na prevenção e no combate à violência doméstica: em 2020, a fatia do Orçamento do Estado destinada a este tema é de 20,3 milhões de euros - uma verba que, segundo a governante, representa um crescimento de 25% desde 2017..Entre as medidas previstas estão 3500 equipamentos de teleassistência para vítimas, um conjunto de meios técnicos que asseguram uma forma específica de proteção, integrando respostas que vão do apoio psicossocial à proteção policial, por um período não superior a seis meses, a menos que isso seja considerado necessário, e que pretende também diminuir o risco de agressões reincidentes. A ministra adiantou que o governo está a trabalhar na criação da base de dados com informações oficiais sobre violência doméstica, ressalvando que é um trabalho "complexo" que envolve a integração de diferentes bases de dados.