Há 272 anos que soldados passam pelo pórtico do Quartel do 11, em Setúbal. Os soldados de hoje são diferentes dos que ali marcharam no século XVIII, "mas não deixam de ser combatentes do mundo, prontos a lutar pelo seu lugar na alta cozinha e nos hotéis de maior prestígio em Portugal e além-fronteiras", disso não tem dúvidas Helena Lucas, diretora da instituição em que o antigo 11 se transformou na Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal. Um lugar que o Núcleo da Liga dos Combatentes da cidade do Sado exige que "seja preservado", afinal estão ali "quase três séculos de história militar"..Em semana aberta à comunidade, Helena Lucas cruza a antiga parada militar do edifício concentrada nos pontos onde ainda se encontram vestígios discretos da história do antigo Quartel do 11 e do seu Regimento de Infantaria n.º11. O mesmo percurso que setubalenses e turistas fazem no Dia do Antigo Combatente, que se comemora este sábado, atraídos pela história e arquitetura ou pela carta do restaurante onde os futuros chefs de cozinha, formados na escola, treinam a criatividade e perícia gastronómica.."Alunos, setubalenses ou turistas, todos são frequentemente alheios ao passado que se tenta preservar com dificuldades", assume Helena Lucas. Sabem que o poeta Bocage marchou por ali em 1781 porque uma placa nas muralhas assim o revela, mas "gostavam de ouvir mais histórias", dizem. As mesmas histórias que Rafael Pombeiro, um dos chefs finalistas da segunda temporada do programa de televisão Hell"s Kitchen, esperava conhecer quando chegou à Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal..Se, enquanto aluno, ouviu o suficiente sobre a história do quartel e dos seus homens? "Não." Contudo, isso não foi impedimento para se sentir um dos "combatentes do mundo", tal como os 150 colegas que ali se formam todos os anos e partem "prontos para tudo"..O chef Carlos Afonso, um dos professores que integra o quadro da escola, também reconhece que "nem sempre é fácil passar para fora dos muros o passado e presente do antigo Quartel do 11". Uma coisa tem a certeza: "Da cozinha e do hotel saem profissionais prontos para o mundo, aliás ainda enquanto alunos começam a lutar por esses lugares através de uma postura exemplar marcada pela disciplina e brio"..A diretora Helena Lucas assume que, "por vezes, a formalidade das muralhas do edifício afasta o público e alimenta o desconhecimento". Falta, talvez, "um centro de documentação com uma área histórica mais aprofundada, aberta a estudantes e público em geral"..Apesar das dificuldades, "o Turismo de Portugal tenta manter a memória do lugar presente o mais possível". "Seja nas fachadas através dos memoriais a Bocage e aos soldados do Regimento de Infantaria n.º 11 caídos na I Guerra Mundial, mas também por elementos decorativos como capacetes e divisas emolduradas nos quartos do hotel, outrora casernas e celas, que ainda mantêm tetos abobadados, janelas e portas adornadas por pedra e até gradeamentos centenários em algumas janelas." E logo à entrada da escola, a Galeria Municipal do 11, embora o espaço não seja particularmente dedicado à exposição de temas ligados ao quartel..O resultado é "uma reconversão muito feliz que dá continuidade à missão da aprendizagem e formação, tal como se fez nos séculos passados, embora com propósitos militares"..O tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, natural de Azeitão e também também ele um "combatente do mundo", com participação na missão da Organização das Nações Unidas em Timor-Leste entre 2000 e 2001, tem dedicado parte da sua carreira a investigar a história militar de Setúbal e reconhece o sucesso deste novo percurso do Quartel do 11. Contudo, afirma que "não é missão da escola preservar a história num nível tão puro", pelo que "se nada mais for feito em Setúbal muito perder-se-á"..Os últimos soldados que passaram por Setúbal após o 25 de Abril viram a política e a especulação imobiliária transformarem-se nas causas da decadência do Quartel do 11 e das suas memórias. Pedro Marquês de Sousa recorda que, "ao contrário de novos quartéis, como o de Tancos, que pode receber inspeções, recruta e formação de militares em diferentes áreas de especialização, o Quartel do 11 não tinha como crescer para além dos seus muros centenários" no centro de Setúbal..A política terá sido a machadada final para o quartel e regimento. "Não participar de forma ativa nas movimentações militares da revolução de Abril de 1974, porque muitos militares do quartel eram favoráveis ao regime, deixou uma marca de preconceito no meio militar", garante Marquês de Sousa..Neste caldo económico e político a história do 11 dividiu-se em duas partes. "Uma iniciada no século XVIII e outra no pós-25 de Abril." Durante os primeiros dois séculos foi "espaço de recruta em dia de inspeção e local de manobras". Após o 25 de Abril, "a popularidade da alma militar caiu, num país sem guerra e que avançava para a desmilitarização"..Degradado e sem capacidade, o 11 foi extinto em 1981 pela Ordem do Exército n.º 7 datada de 31 de julho. O edifício ficou à guarda da Câmara Municipal de Setúbal. Foi depois adquirido pelo Turismo de Portugal e voltou a abrir portas em 2013 como Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal que, em menos de uma década, ganhou o estatuto de terceira mais escolhida do país, seguida de Lisboa e Porto..Talvez o Quartel do 11 não tivesse como sobreviver nos novos tempos, "mas a história pode sempre sobreviver se houver vontade e os governos apostarem nas condições ideais para a preservação", afirma Pedro Marquês de Sousa..Algo que hoje, em Setúbal, é conseguido a muito custo e de forma fragmentada na Escola de Hotelaria e Turismo, Biblioteca Municipal e no número 62 da Rua dos Almocreves, onde está a casa do Núcleo da Liga dos Combatentes. É um rés-do-chão húmido com salas interiores de portas abertas, numa rua estreita contígua ao edifício dos Paços do Concelho..Tem valido à história militar da região o trabalho voluntário dos associados do Núcleo da Liga dos Combatentes, que estão "determinados a preservar fotografias, postais, registos de recruta e embarque para o Ultramar, documentos de soldados de vários pontos do país que chegavam a Setúbal". Rostos do século XIX e XX, muitos deles ligados ao Quartel do 11 e ao Regimento de Infantaria n.º 11, alguns chegaram a integrar a Infantaria Negra da Legião Francesa, a mais mortal em campo de batalha..Fundado a 30 de março de 1924 o Núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes ficou no Quartel do 11 apenas nos primeiros cinco anos de existência. Depois, passou pela Casa do Corpo Santo, instalações da Cruz Vermelha e, em 1943, chegou por fim à morada que ocupa até hoje..Sendo o Quartel do 11 um bastião da história militar de Setúbal, porque não continuou a trabalhar unido com o Núcleo da Liga dos Combatentes? Um tinha o espaço, outro os papéis. Parte da resposta está, uma vez mais, ligada à política. "O núcleo de Setúbal foi criado durante a ditadura militar que precedeu o Estado Novo, por Luís Vilaverde, militar e vice-presidente da Câmara Municipal de Setúbal", explica o jovem historiador setubalense Diogo Ferreira. Depois das ditaduras "as associações de apoio a forças militares deixaram o Quartel do 11 e a Liga dos Combatentes, mergulhados em preconceito por parte da esquerda radical"..Passado quase século desde esta separação, Diogo Ferreira aponta como "grave o descaso em que os testemunhos da história militar de Setúbal estão, com milhares de páginas por ler e digitalizar". Um descaso total sobre "uma joia em bruto", considera o coautor do livro "Os Combatentes do Concelho de Setúbal na Guerra em França (1917-1918)" escrito em parceria com Pedro Marquês de Sousa..O seu olhar aviva-se quando Amadeu da Silva, ex-polícia militar com serviço cumprido do Ultramar e um dos cuidadores da casa, exibe um álbum datado da década de 1940 manchado de humidade. Virada a capa, surgem fotografias, postais, cartas de valor incalculável enviadas por militares portugueses às suas famílias, namoradas, quando estiveram em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial..Outras salas têm armários "com dossiers sobre as gerações de militares de Setúbal". "Quem sabe quanto daquilo que não foi lido guarda histórias sobre o Regimento de Infantaria n.º 11 e o seu quartel? Quem foram esses homens?", questiona-se Diogo Ferreira ponderando quando terá oportunidade para se lançar em nova investigação..Amadeu da Silva, que quando ali chegou em 1996 teve que colocar "mãos à obra para limpar e pintar salas", considera que o que existe na velha casa "é melhor do que nada, mas não deixa de ser pouco, muito pouco", lamenta..O ex-polícia militar recorda-se do tempo em que partiu rumo a Angola, tal como outros setubalenses. Foi dos primeiros a ir em 1961, depois de um oficial dizer "vão embarcar, precisam de vocês". Não sabia ao que ia. Só depois de chegar a Angola percebeu que estava a começar uma guerra..Dos primeiros a partir, Amadeu da Silva foi também dos primeiros a regressar, em 1963, "numa época em que os agentes da PIDE esperavam que os soldados falassem mal da guerra para os prenderem". Os soldados tinham de dizer que lá tudo era bom, "afinal até engordavam em Angola". Mas em Luanda e em Cabinda viu homens serem presos e mortos no focinho de cães, nos pés de homens e atropelados com jipes..Das suas memórias menos sombrias fazem parte aventuras recordadas até hoje com orgulho, como a noite em que desafiou a sorte e deu um passo para fora da sua fronteira militar "para apertar a mão a um militar da ONU [Organização das Nações Unidas]". Longe de imaginar que um dia Portugal não estaria de costas voltadas para a ONU, faria parte dela e o seu secretário-geral seria um ex-primeiro ministro português..Depois do 25 de Abril, Amadeu da Silva esperava que finalmente fosse o momento de falar e de ver as suas memórias preservadas. Talvez com elas ajudar a escrever a história dos soldados da região. Enganou-se. "O governo, os militares, o povo, todos queriam esquecer a mancha da Guerra Colonial", felizmente ele, e milhares de outros ex-combatentes, não..dnot@dn.pt