Combate à obesidade infantil deveria começar antes mesmo da gravidez

A obesidade é um grave problema de saúde pública no mundo. Em Portugal, começa cada vez mais precocemente e aos 2 ou 3 anos a incidência de excesso de peso é de 30%. Para a pediatra Carla Rêgo a prevenção deveria começar nos cuidados de saúde primários e antes da gravidez. "Ou se trabalha a pensar nos próximos dez anos ou não vamos conseguir cortar o ciclo."
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Instituído em 1981, o Dia Mundial da Alimentação comemora-se a 16 de outubro, data da fundação da Food and Agriculture Organization (FAO), uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU). A sua criação prendeu-se com a necessidade de alertar e consciencializar o mundo para os vários problemas relacionados com a alimentação, nomeadamente a erradicação da fome e o combate ao desperdício alimentar, mas passa também pelas preocupações crescentes com a sustentabilidade dos sistemas alimentares e com o aumento da obesidade no mundo. Segundo dados da ONU, enquanto 820 milhões de pessoas não têm acesso a alimentos suficientes, mais de 2 mil milhões de seres humanos têm problemas de excesso de peso e de obesidade.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) refere que a obesidade mundial triplicou desde 1975 e, segundo dados de 2016 -- não há dados atuais disponíveis --, cerca de 650 milhões de adultos eram obesos, ou seja, quase 13% dos maiores de 18 anos em todo o mundo.

É certo que a grande maioria da população mundial vive em países onde os problemas associados ao excesso de peso matam mais do que a falta de alimentos. Porém, a obesidade infantil não é menos preocupante: em 2020, cerca de 39 milhões de crianças com menos de 5 anos estavam com excesso de peso e mais de 340 milhões entre os 5 e os 19 anos tinham peso a mais e obesidade (dados de 2016). A obesidade é, pois, um problema grave de saúde pública, mas, a boa notícia é que pode ser prevenida. Este é o grande desafio do século XXI e deve ser considerada uma prioridade pelos governos, que têm um papel importante na criação de um ambiente favorável à adoção das melhores práticas. Exemplos como o Sintra Cresce Saudável (ver caixa ao lado), de sensibilização das criança e famílias para a importância da alimentação saudável e para uma mudança de hábitos, poderão ser replicados pelo país trazendo frutos à saúde pública nas próximas décadas.

Segundo dados da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO), Portugal apresenta uma taxa de excesso de peso infantil de 29,6%, sendo que 12% destas situações constituem já um quadro de obesidade. Por seu lado, a Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil (APCOI) estima ainda ter havido um aumento médio de peso de 10% em crianças durante o confinamento. Os dados concretos não estão ainda disponíveis, mas no site desta associação pode ler-se que, de acordo com os cálculos realizados, se cada criança por dia tiver ingerido em média cerca de 200-300 calorias extra sem ter aumentado na mesma proporção o seu gasto energético através de atividade física, significa que nos últimos dois meses de confinamento terão sido acumuladas 12 mil a 18 mil quilocalorias a mais, o que corresponde a um aumento de peso de, pelo menos, dois quilogramas.

O relatório Health at a Glance, de 2019, realizado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico) coloca Portugal na nona posição no ranking mundial de obesidade infantil, com uma prevalência de 37,1% nas crianças entre os 5 e os 9 anos. Este ranking é liderado pelos Estados Unidos, com uma incidência de 43% nesta faixa etária. Também no que diz respeito aos adultos e adolescentes maiores de 15 anos, Portugal fica mal posicionado: 67,6% da população portuguesa a partir desta idade tem excesso de peso, o que indicia uma aproximação cada vez maior ao grau de obesidade. Convém esclarecer, de uma forma simplista, que o peso a mais se revela pelo cálculo da relação entre peso, altura e género, resultando daí o índice de massa corporal (IMC), e que acima dos 25% é considerado excesso de peso, dos 30% aos 40% obesidade e acima disso obesidade mórbida.

Carla Rêgo, pediatra do Centro da Criança e do Adolescente do Hospital CUF Porto, membro do Conselho Científico da Plataforma contra a Obesidade da Direção-Geral da Saúde e ainda vice-presidente da SPEO, foi responsável pela criação e a implementação da primeira consulta do país de obesidade pediátrica, em 1998, então no Serviço de Pediatria do Hospital de São João. "Verificámos na altura que a quantidade de crianças obesas na consulta de pediatria era crescente. Estas crianças eram tratadas na endocrinologia pediátrica, a meu ver de forma errada porque quase 98% da obesidade tem como causa fatores comportamentais", explica esta especialista. Surgiu assim a primeira consulta específica para obesidade infantil, multidisciplinar, que envolvia pediatra, nutricionista e psicólogo.

Desde então, muito foi feito, mas muito mais está ainda por fazer. "O problema da obesidade é que esta é o reflexo dos comportamentos de há 10 ou 12 anos. Ou seja, temos uma décalage temporal de mais de uma década. O primeiro fator que identifico é falta de responsabilidade por parte dos decisores e dos educadores", diz. Ou seja, para esta especialista quando existe uma situação de obesidade a grande tendência é apontar o dedo para a criança, quando esta só é obesa devido à sua trajetória pediátrica. "Os decisores têm de perceber que as mudanças têm de existir no ambiente global, seja escolar seja familiar, mas, sobretudo, ao nível dos cuidados primários do SNS para se intervir precocemente no ciclo da vida", explica. "Se quero reverter o aumento da prevalência da obesidade, o primeiro ponto onde devo atuar é no ambiente inicial, antes mesmo da gravidez, porque é aqui que vamos travar a progressão da obesidade no ciclo de vida", revela.

Isto significa que os cuidados primários de saúde deveriam ser fortemente apetrechados de ferramentas e equipas multidisciplinares para sensibilizar as futuras mães na adoção de um estilo de vida saudável, a não aumentar muito de peso e saber vigiar o crescimento do lactante nos primeiros meses, sobretudo quando nasce em famílias de maior suscetibilidade. "Não nos podemos esquecer de que o primeiro ano de vida é uma janela de oportunidades para moldar comportamentos alimentares. Quando uma criança aumenta progressivamente o seu IMC até aos 5 ou 6 anos acima do que era expectável está a aumentar o número de células gordas, número que nunca mais vai perder, porque a célula gorda não morre", explica. Adianta ainda que essa criança só tem 50% de hipóteses de ser um adulto adequadamente nutrido. Se entrar nos 12 ou 13 anos e continuar com excesso de peso e obesidade, então só terá 10% a 15% de ser um adulto adequadamente nutrido. Se for mulher e se tornar numa gestante obesa vai transmitir transgeracionalmente a suscetibilidade genética e, assim, perpetuar o ciclo da obesidade.

Segundo o EPACI - Estudo do Padrão Alimentar e do Crescimento Infantil Portugal 2012, que avaliou a forma como crescem as crianças entre os 0 e os 3 anos em Portugal, aos 2/3 anos de idade a prevalência de excesso de peso e obesidade era de 30,8%. "Isto denota que a obesidade em Portugal começa cada vez mais precocemente, e, ou se trabalha a pensar nos próximos dez anos ou vamos continuar com este nível de incremento", revela Carla Rêgo, que também coordenou este estudo.

Para esta especialista "qualquer campanha desenvolvida a nível escolar ou na sociedade é importante, mas é na vigilância da saúde que deve ser feito o grosso do investimento". A nível escolar, por exemplo, têm sido tomadas algumas medidas importantes, mas ainda assim insuficientes, porque são restritivas e não pedagógicas. O despacho do governo, de 17 de agosto deste ano, proibiu, a partir deste ano letivo, a venda de produtos menos saudáveis nas escolas públicas como incentivo ao consumo de alimentos saudáveis. Bolos de pastelaria, pizas, hambúrgueres, refrigerantes e toda uma panóplia de alimentos menos saudáveis ficam ao portão das escolas. Pode não ser suficiente mas é um primeiro passo no caminho correto. "As crianças sabem a teoria, já a aprenderam, mas tem havido uma má condução na forma como se explica as vantagens de uma alimentação saudável. Não basta debitar informação, há que interiorizar para que possam fazer as suas escolhas", afirma esta médica. Defende que nada deve ser proibido a um miúdo, nem que tenha obesidade mórbida, porque não é por aí que se conseguem resultados. "A pior coisa que nos podem fazer é colocar restrições à frente, por isso tem de ser uma educação construtiva e baseada na corresponsabilização de escolhas saudáveis", remata.

Segundo a sua experiência no Hospital CUF do Porto, nos últimos dois anos de pandemia o incremento de peso aconteceu sobretudo em rapazes dos 7 aos 12 anos. "Curiosamente este incremento não foi só nos obesos, mas sobretudo nas crianças adequadamente nutridas, o que leva a supor que as mudanças comportamentais, sobretudo na redução de atividade física, foram o aspeto mais dramático deste período." A obesidade traz consigo comorbilidades, implica uma má qualidade de vida e uma significativa redução da esperança de vida, logo, mais encargos em saúde. "Acho que andamos todos a dormir porque ainda não percebemos as consequências desta população pediátrica que já é obesa há mais de 20 anos. Vai ser uma catástrofe completa em termos de doença cardiometabólica, seja hipertensão, diabetes, doença coronária ou doença vascular cerebral", remata Carla Rêgo.

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