Há mar e mar, há ir e voltar". O slogan que se fez provérbio, criado para o Instituto de Socorros a Náufragos na década de 1960 e repetido até hoje, geração após geração, é do poeta Alexandre O'Neill [1924-1986], que quis ser marinheiro mas não foi, por causa da miopia. Há quem diga que antes deste propôs outro - "Tenha um verão desafogado" -, que não foi aceite. Anedotas não faltam em torno da carreira do poeta enquanto publicitário. Lá chegaremos. Antes conviria perceber como chegou ao mundo da publicidade um dos maiores poetas portugueses que, num assomo de modéstia em entrevista a Clara Ferreira Alves (Expresso, 1985), um ano antes de morrer, se definiu como "grande poeta menor". Nem ele sabia, a acreditar no que disse à jornalista: "Não sei como fui lá parar mas fui. Fiz-me aprendiz de publicidade porque era uma maneira pouco trabalhosa de ganhar para o sustento. Talvez fosse essa a razão. Já lá vão 30 anos." Seria. Sobretudo para quem brincava com as palavras desde a adolescência. Aos 17 começou com a poesia e com ela se quedou até à morte. A publicidade foi só sustento. E barrigada de riso. O'Neill gostava de rir (e de fazer rir), como confessou em Autorretrato - "... ri-se do que neste soneto sobre si mesmo disse" -, e como contou a alguém um dos seus patrões, o publicitário Rui de Brito: "Era impossível levá-lo a uma reunião com um cliente. Desmanchava tudo, troçava, ria à gargalhada batendo com os pés no chão.". Antes da publicidade, o fundador do Grupo Surrealista de Lisboa militou no MUD Juvenil e trabalhou como escriturário na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio, de onde saiu em 1952 por se ter recusado a pôr luto por Óscar Carmona. Expulso da função pública e preso no ano seguinte por ter ido esperar a jornalista feminista e antifascista Maria Lamas ao aeroporto, passou a estar debaixo da vigilância da polícia política..Depois, trabalhou em seguros e nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, escreveu em jornais, colaborou com a televisão e o teatro, mas foi a publicidade que lhe deu o rendimento mais regular e o tempo para a poesia. "Foi assim com muitos escritores e poetas perseguidos pela ditadura", explica Alberto Bemfeita, 75 anos, artista plástico que dedicou grande parte da sua vida à publicidade, como criativo na área do design gráfico. "Tinham muita dificuldade em encontrar trabalho devido às suas atividades de oposição ao regime e as agências de publicidade iam buscá-los como copywriters. Todos ficavam a ganhar. Eles podiam dar largas à imaginação e à escrita e as agências tinham os melhores criativos na área do texto. Foram a nossa liberdade, os poetas", diz o autor da fotobiografia de José Carlos Ary dos Santos, de quem foi amigo e com quem trabalhou na Espiral, mais tarde comprada pela francesa Publicis.."Ele não merece, mas vota no PS".Ao contrário de Ary dos Santos e de Orlando da Costa, ambos militantes comunistas antes e depois do 25 de abril, Alexandre O'Neill não tinha partido, mas votava no Partido Socialista, para o qual até fez um slogan: "Ele não merece, mas vota no PS". Nunca passou de blague, como muitos dos que criou para a publicidade nunca passaram do papel. "Vá de metro, Satanás"; "Com colchões Lusospuma você dá duas que parecem uma"; "Gascidla na cozinha é um descanso" são pérolas que nos fazem lamentar não ter tido o privilégio de assistir a uma reunião de brainstorm com o poeta desarrumado que inventou o slogan "Bosch é Brom", depois transformado no aceitável "Bosch é bom" pelo também poeta e publicitário Vasco Costa Marques. Mas não se pense que de O'Neill só saíram piadas. Além do imortal e já referido "Há mar e mar, há ir e voltar", deu ao mundo da publicidade campanhas como "A segurança volta sempre", para os motoristas da Rodoviária Nacional: "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és", para as canetas Parker, acompanhada de textos dirigidos a cada um dos públicos-alvo; "Gascidla, o gás da cidade", "Mobil Serviço, dê por ele sem dar por isso"; "Tofa: revelando num instante o segredo de um aroma"; ou "Peixes de todos os mares, congelai-vos", para a Menina Pescadinha, que é genial que tenha passado em tempos de lápis azul, já que glosava a máxima marxista "Proletários de todo o mundo, uni-vos!" e talvez por isso seja muitas vezes atribuída a José Carlos Ary dos Santos (1936-1984), poeta comunista que, nos seus intensos 47 anos de vida, dividiu o tempo da poesia e das canções (escreveu cerca de seiscentas), que o imortalizaram, da intervenção política e da boémia, que o marcaram, com o da publicidade, que lhe pagava as contas.."A melhor invenção depois do beijo".Era o fim dos anos 1950 e José Carlos Ary dos Santos teria 22 quando se tornou copywriter. Fugido de casa do pai aos 16 anos (a mãe morreu tinha o poeta 13), já com um livro de poesia publicado pela família contra sua vontade, Asas, vendeu máquinas de pastilhas elásticas, foi paquete e escriturário, deu explicações, trabalhou na estiva, em revolta contra a sua origem de classe, "a altíssima burguesia lisboeta". As palavras falaram, no entanto, mais alto e foi parar à publicidade, área em que trabalhou até à morte, com muito sucesso. "Trabalho em publicidade e é daí que vêm os meus proventos mais regulares. No entanto, sempre lhe quero dizer que se eu quisesse viver de um modo mais modesto talvez pudesse viver com o que ganho da poesia", dizia ao Diário de Lisboa, em 1983. Dois anos antes, confessava a Baptista-Bastos em O Ponto que "A poesia com P grande, digamos, escrevo-a às ondas; e chega a haver alturas, semanas até, que só escrevo poesia. É o meu tempo de cio." Em contraste com a luta e a força das palavras que imprimiu na poesia de intervenção, é sobretudo ternura - aquela de que o "poeta de combate disparate" e "palavrão de machão no escaparate" diz que vai morrendo aos poucos no seu Autorretrato - que encontramos nos slogans que dele ficaram para a história.. "Minha lã, meu amor", que fez para a Woolmark; "Knorr é naturalmente melhor"; "Halazon, a melhor invenção depois do beijo", para um purificador de hálito e que lhe terá saído de improviso numa reunião; "Cerveja Sagres, a sede que se deseja"; "Eles merecem o melhor", para os pudins Maizena ou "Mais seguro, mais futuro", criado para o Grémio Nacional dos Seguradores, são os mais conhecidos. Alberto Bemfeita, que trabalhou com Ary dos Santos na Espiral e depois na Publicis, antes e após o 25 de Abril, lembra com emoção o privilégio que foi. "Era genial. Tinha uma facilidade enorme em criar - podia não ter nada, mas o cliente ligava e ele começava a escrever, como se aquilo já estivesse feito. E, depois, parece que as palavras tinham pernas, não sei como explicar isto, era como se andassem, como se tivessem vida", diz, notando que, na altura, a publicidade era feita por pessoas excecionais. "Não havia máquinas, saía tudo das mãos e das cabeças dos criativos. Era um trabalho que exigia muito, absorvia, podia ser extenuante, mas a que nos dedicávamos com paixão. Era criação pura, por isso tinha muitos escritores, poetas, artistas plásticos"..Poesia por encomenda.Orlando da Costa (1929-2006), pai do primeiro-ministro António Costa e do jornalista Ricardo Costa, escritor, poeta, intelectual e militante do Partido Comunista Português, terá sido um dos primeiros copywriters a viver exclusivamente da publicidade em Portugal, contou ele, em entrevista ao Jornal de Letras, em 1994, aquando do lançamento do romance Os Netos de Norton, que foi um grande acontecimento literário, visto que o anterior (e aclamado) romance do escritor - Podem Chamar-me Eurídice - tinha 30 anos.. "Graças a um amigo que me deu a mão, o Eduardo Calvet de Magalhães, comecei a fazer publicidade como copywriter. Devo até ter sido dos primeiros a viver exclusivamente disso. Ganhava 1500 escudos por mês para escrever textos publicitários. E acabei por passar a vida toda na publicidade. Tive oportunidade de viajar muito e de viver relativamente bem. Em compensação (ou em descompensação...), acabei por não ter disponibilidade para escrever. Lia muito, escrevia uns poemas, fazia parte da Sociedade Portuguesa de Escritores, mas tempo para romances nem pensar. Escrever um romance exige fôlego e continuidade e isso era exatamente o que eu não tinha", disse, para explicar o interregno. "Eu, em termos biográficos, andei quatro décadas distraído. O tempo passava por mim e eu não me apercebi de que estava a tornar-me mais velho." A entrada para o mundo da publicidade, pela mão de Calvet de Magalhães, deveu-se à proibição pela ditadura de ingressar na carreira de professor. Para isso contribuiu a oposição aberta ao regime de Salazar, que lhe valeu duas prisões, uma delas de cerca de quatro meses em Caxias. Natural de Moçambique, criado em Goa numa famílIa da elite goesa e chegado a Portugal em 1947 para se formar em Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras, tornou-se comunista, militando no PCP desde 1954. Com três livros de poesia escritos, entrou então para o mundo da publicidade porque a literatura não sustentava ninguém, muito menos um opositor ao fascismo. Alberto Bemfeita nunca trabalhou com Orlando da Costa, mas lembra-se bem dele nos encontros de publicitários que à época eram frequentes. Diretor criativo da agência Marca durante anos, foi dele o slogan da TAP "Através do mundo em boa companhia". E é também dele a designação de publicidade como "Poesia avulso, por encomenda", expressão que usou numa entrevista ao Diário de Notícias, em 1994. "Como se faz poesia por encomenda?", perguntava o jornalista. "Não é fácil, mas é possível. Encomenda, claro está, no sentido de que é necessário escrever para transmitir uma determinada mensagem publicitária, que exige muito da criatividade."