Passados quatro meses desde que recebeu o Prémio Pessoa, Miguel Bastos Araújo já se habituou a ir ao supermercado e ouvir alguém dizer "aquele é que recebeu o prémio". Antes, tem consciência, era um ilustre desconhecido em Portugal, mesmo que seja considerado um dos maiores especialistas mundiais em alterações climáticas, com distinções internacionais, e um dos cientistas mais citados. Ainda não lhe pedem para tirar selfies mas, em jeito de brincadeira, diz que já lhe pagaram copos em bares..Mora nos arredores da capital espanhola - é investigador do Museu de Ciências Naturais de Madrid -, mas vem com regularidade a Évora, onde é professor convidado pela universidade. Foi ali que viveu a adolescência até ingressar na faculdade em Lisboa e é onde tem casa e até abriu um espaço hoteleiro com um conceito dirigido a artistas e a cientistas. A vida académica tem feito que ande de um lado para o outro, sempre na Europa, mas foi Évora, onde nem sequer tem raízes familiares, que lhe deu razões para, além de cidadão europeu, se sentir de algum lado, para se sentir alentejano..É na "sua" cidade que decorre esta conversa sobre o despertar precoce para a natureza na Bélgica onde nasceu - reforçada pelas histórias de África que o avô materno lhe contava -, sobre a família, a espiritualidade, o ambiente..Miguel Bastos Araújo, pai de quatro filhos, três deles pequenos, é professor também convidado da Universidade de Copenhaga. Em Évora, dirige a cátedra Rui Nabeiro. Fez o mestrado e o doutoramento na University College London..Quando é o homem que fala, Miguel entrega-se às memórias de infância, quando ia observar e apanhar insetos com o pai nos campos das Ardenas, ou quando percorria zonas de Portugal com os amigos a observar aves. Depois, já mais confortável, de Citroën 2 cavalos até às Astúrias... Estava talhado desde pequeno para estudar a natureza, percebe-o desde cedo. As publicações sobre animais encantavam-no - ainda pediu aumento da mesada para comprar a Fauna - já comprava Os Bichos -, mas teve de abdicar do Almanaque do Tio Patinhas..Quando fala o homem, Miguel não esconde a dimensão espiritual que se vai apurando com os 50 anos que fará a 24 de abril e do medo de morrer. Gosta de viver, diz de forma exclamativa..Quando fala o cientista, Miguel Bastos Araújo alerta para os impactos das alterações climáticas, de como as ondas de calor passarão de quatro ou cinco dias para quatro ou cinco semanas e de como isso irá ter consequências na mortalidade e eventualmente no aparecimento de novas doenças. Na região do mundo onde estamos, a situação mais preocupante, afirma, tem que ver com as ondas de calor, que se tornarão mais frequentes e mais longas, mas sobretudo com a redução da oferta de água. Migrar pode ser uma forma de o homem se adaptar ao novo clima..Quando fala o cientista, Miguel Bastos Araújo alerta também para o facto de Portugal e Espanha terem regiões que podem tornar-se demasiado quentes e de isso poder afugentar o turismo..Um autêntico cidadão europeu.Nasce em Bruxelas, vem viver para Portugal entre Lisboa e Évora. Faz Erasmus na Escócia, mestrado e doutoramento em Londres. É investigador em Copenhaga e Madrid. É um cidadão do mundo... Sou um cidadão da Europa. A cidadania do mundo é um conceito abstrato. Sinto-me em casa na Europa, em particular na Europa Ocidental, que é onde vivi. Vivi no Reino Unido mais de dez anos, vivi em Copenhaga durante um ano permanentemente, vou e venho muitas vezes, vivi em França, nasci na Bélgica, vivi em Portugal, na Espanha. Já vivi cerca de 30 anos fora do país, 20 no país, mas esses 30 anos fora vivi na Europa..Sente-se mais europeu do que português? Sinto-me primordialmente europeu. A minha língua é o português, as referências são portuguesas. Sinto que tenho identidade europeia, mas quando vivemos em cidades diferentes acabamos por gostar de coisas diferentes em sítios diferentes e de desgostar de coisas que encontramos nesses mesmos sítios. Sempre que saímos de um sítio sentimos falta, saudades daquelas coisas que deixámos....Está a usar uma palavra muito portuguesa, saudade. Do que sente falta de Portugal? Não tenho saudades só de Portugal, tenho saudades também de França. Vivi no centro de Montpellier, tenho saudades de descer a rua e comprar os croissants acabados de fazer, aqueles croissants folhados que se desfazem na boca, de ir a uma loja só de queijos, da loja só de banda desenhada, a cidade tinha uma oferta de comércio e cinema extraordinária, tínhamos cinema internacional, o Diagonal, com 10 a 15 filmes que mudavam todas as semanas, e eu tinha um passe mensal para ir ao cinema. Em contrapartida, em Londres há mais oferta de teatro, espetáculos musicais, de cultura em geral, mas não tanto de cinema. Copenhaga é a capital mais bem organizado que conheço - ia de bicicleta para todo o lado, se era um sítio mais longe, metia a bicicleta no comboio. Em Copenhaga estava mais em forma do que jamais estive em qualquer outro lugar. As casas raramente têm elevador, os prédios não têm mais do que cinco andares e é raríssimo haver um que tenha elevador. Para as pessoas, o exercício físico é muito importante nas rotinas do dia-a-dia. A nível académico, o ambiente no grupo de Copenhaga é extraordinariamente agradável, friendly..E de Portugal? Em Portugal tenho os amigos... há as paisagens, a comida, a língua, as memórias. Num jogo de realidade virtual, podia imaginar que vivia no centro de Montpellier, desceria de bicicleta até ao campus de Oxford, vinha passar o fim de semana ao Alentejo, à noite ia comer umas tapas e depois ia ao cinema. Todas as pessoas que têm vivências fora acabam por sentir falta das coisas que fizeram parte do seu quotidiano e que deixaram de fazer num dado momento. E em quantos mais sítios uma pessoa vive, mais cresce esta insatisfação. Que, por um lado, é muito gratificante porque há sempre experiências que fazem parte de nós próprios. Mas, por outro, há sempre aquela sensação de que estamos a perder alguma coisa. Quem nunca sai do mesmo sítio não tem esta sensação..Que razões levaram a que nascesse em Bruxelas? O meu pai estava lá a fazer o doutoramento e a minha mãe também. Além disso, o meu pai teve de sair de Portugal por razões políticas. Naquela altura, havia uma grande parte de portugueses que saíam por questões políticas. Vivi lá até aos 5 anos e regressei logo após o 25 de Abril..Assim nasce a paixão pela natureza.É na Bélgica que começa a desenvolver essa paixão pela natureza? Tínhamos uma casa alugada nas Ardenas, na parte da Valónia na fronteira com a França, numa zona montanhosa, à escala do que é Bélgica, e íamos dar grandes passeios. Foi a minha introdução ao naturismo, à educação ambiental e é onde identifico os primórdios do gosto pela natureza. Depois, quando cheguei a Portugal, passei a ter mais contacto com os meus avós que retornaram de Moçambique e tudo isso é uma aventura enorme porque o meu avô tinha nascido em África..Imagino que aquilo que o seu avô lhe contava seria mais romântico do que andar a apanhar insetos nas Ardenas... É diferente. Os insetos são muito interessantes... Quando uma pessoa se debruça e começa a observar o mundo das coisas pequeninas... No nosso dia-a-dia não olhamos para elas, mas se olhássemos com uma lupa, ou como as crianças podem fazer porque têm essa capacidade, víamos um mundo fascinante. O meu pai tinha construído uns terrários (aquários para animais terrestres) de vidro e madeira e eu metia lá os bichos e passava horas a observá-los. O louva-a-deus à espera de que a mosca pousasse....Horas? Sim, sim, aquilo era uma aventura literal. Se nos colocarmos à escala do bicho, é realmente extraordinário, não é preciso ir ver os leões. Claro que, quando o meu avô me contava que tinha matado uma leoa que tinha filhotes, ou quando tinha sido atacado por um búfalo, era outra escala. Não sei como teria sido se não tivesse tido esta influência. Temos naturalmente algumas tendências que vêm de fábrica, mas as nossas vivências podem fazer que se desenvolvam ou não..A chegada a Portugal e a política.Vem viver para Portugal na altura do PREC. Que memória tem desse tempo? Vivia no norte de Lisboa, numa zona muito campestre, a Rinchoa. Era um sítio feio porque estava a tudo a crescer de uma forma desordenada. Vivemos lá durante uns seis meses e depois fomos para Benfica, que era mais bonito, eu vivia em frente à mata. Lembro-me de que o debate político era muito aceso, havia muita polarização na sociedade portuguesa. Uma polarização extrema, à esquerda. Ninguém se afirmava de direita. As pessoas que se afirmavam de direita para os parâmetros de hoje não eram de direita. Ouvimos os discursos do CDS da altura, que eram os reacionários, e falam de um caminho para o socialismo..Em casa havia muita política? Havia as duas coisas. Os meus avós maternos eram retornados e estavam zangados com a descolonização, a minha mãe tinha uma perspetiva oposta. E depois havia a Guerra Fria, uma coisa que para as crianças dessa altura era tema de conversa - a União Soviética, os Estados Unidos, a polarização global que existia entre os dois extremos, um certo receio de uma guerra nuclear. Isso fazia parte do imaginário infantil da época..Não lhe fez despertar o bichinho da política? Sempre o tive, nasci num ambiente muito politizado. A verdade é que a minha família estava muito metida na política. Nunca fui apolítico, sou até bastante político, mas tento evitar deixar-me apanhar por esse rio. Acho que já há demasiadas pessoas interessadas em política..A adaptação a Portugal correu bem? No princípio não falava português. Ouvia português em casa. Aos 2, 3 anos, como eu não falava, a minha mãe levou-me ao pediatra e ele disse: "Não fala porque na escola tem o francês, em casa o português e ainda não se decidiu, se quiser que ele se despache, fale-lhe em francês." O que, quanto a mim, foi um erro... Tenho filhos e de maneira nenhuma optei por essa via..Vim antes e fiquei uma semana com tios e primos, tinha algumas conversas com a minha tia para coisas práticas, mas o mundo era em português e, ao fim de uma semana, quando a minha mãe chegou, disse logo umas palavras em português..E depois de Benfica vem viver para Évora... O meu pai vivia em Évora. Devo ter vindo por volta dos 12,13 anos e fiquei até à universidade. A adolescência e a pré-adolescência foram aqui..Sente-se alentejano? É a zona do país onde me sinto melhor, o que é engraçado porque não tenho família de antepassados no Alentejo, tenho em Lisboa, no Algarve, em Trás-os-Montes, nas Beiras....Se lhe perguntam de onde é, diz que é do Alentejo? Sim, é onde se cresce, onde se fazem os amigos da juventude que é marcante. Por outro lado, gosto muito do campo, de cidades pequenas. Gosto das grandes por aquilo que elas oferecem, mas raras vezes considero que se viva bem nessas cidades. E onde se pode viver bem, nos centros, são cidades caríssimas, acima do nível de vida das pessoas assalariadas, qualquer que seja o salário. Em Londres, há pessoas com salários extraordinários mas que não conseguem viver no centro, em Paris é o mesmo e em Lisboa também... em Madrid há sítios bons para viver no centro, mas são caríssimos. A escolha é viver no centro e viver mal, num espaço exíguo e má qualidade de construção. E essa foi a minha opção enquanto jovem, viver no centro em condições miseráveis..Nessa altura tudo é possível... É-se jovem, a opção era estar perto de onde as coisas acontecem. Agora, com família, nem pensar. Quero é que tenhamos espaço..Quando é que lhe dá o clique do que quer fazer? No início era a Biologia. O meu interesse eram os animais e a natureza e mesmo quando vim para Évora já tinha esse interesse..Os passeios a pé pelo país a observar a natureza.Tinha bichos em casa? Em Lisboa tinha periquitos, um cão, hamsters, peixes. Quando vim para Évora comecei a colecionar cobras, salamandras... O problema com as cobras foi no dia em que saíram do terrário, foi um grande alvoroço em casa porque ninguém sabia onde é que elas estavam. Umas encontraram-se e voltaram ao terrário, uma delas nunca se encontrou. Quer dizer, encontrou-se anos depois numa bolsa de ar da carpete. E tinha escorpiões... todos os copos de água da casa estavam cheios. Era fácil a convivência porque era uma família de biólogos, o meu pai comprava-me os escorpiões, era um reforço da minha semanada..E agora continua a ter animais? Só gatos, os meus filhos querem um cão, mas não dá, não tenho vida para ter um cão. O problema são as viagens e as férias. O gato deixamo-lo com um familiar, o cão é mais complicado..Em jovem percorre o país como militante da Liga para a Proteção da Natureza, a pé, de motociclo, depois num Citroën dois cavalos... Não foi bem do Algarve ao Minho, isso é uma ideia um pouco romântica. É verdade que ia com os meus amigos e percorríamos uma determinada área a pé. A maior viagem foi do cabo Sardão até ao cabo de São Vicente, foi uma semana a andar para descer a costa alentejana..Tinha quantos anos? Quinze. Também fiz a zona de Barrancos. Fizemos grandes percursos sobretudo no sul do país, mas também ao norte de Espanha, às Astúrias. Já era membro da Liga e sócio muito ativo, mas fazia isto com amigos para observar a natureza, para descobrir espécies que nunca tínhamos visto. Fazíamos as nossas listas de espécies, principalmente de aves..Mas depois conseguiam classificá-las? Era na base da confiança..E a viagem no dois cavalos? Foi o meu primeiro carro, deixei de precisar de ir a pé e de transportes públicos, fui para Trás-os-Montes... Sempre com o objetivo de observar a natureza e as espécies, o lazer estava associado a estar no campo a observar a natureza. Tínhamos esse nicho, há pessoas que fazem surf... Todo o meu grupo de amigos fazia isto, íamos para o campo e víamos aves. Hoje, retrospetivamente, acho que os meus pais tiveram muita sorte. Havia risco, claro, viajávamos precocemente, mas isso dava-nos um propósito, um objetivo de vida naquelas idades que são complicadas em que os jovens procuram afirmar-se e diferenciar-se dos pais. Nós também tivemos sorte por ter tido uma atividade que era saudável, porque, além de estar no campo, respirar ar puro, aprender a observar a natureza, conhecia-se o país, as pessoas, o mundo rural....O que mais o marcou nessas aventuras, as paisagens ou as pessoas? É holística, a experiência. Penso que as paisagens me marcaram bastante, mas marcaram-me imenso os cheiros. Quando chegava de Inglaterra e vinha para o campo, lembro-me de que uma das coisas que mais felicidade me dava, e ainda hoje dá, era o cheiro dos arbustos mediterrâneos na primavera e no verão, em particular as estevas. Não há cheiro melhor no sul do país e na metade sul da Península Ibérica do que o das estevas, um cheiro agridoce, único..Os cheiros trazem tantas memórias... Também tenho cheiros da Bélgica, o cheiro da madeira queimada nas aldeias... é uma lenha especial que não há cá e que voltei a encontrar em França. Fui a França fazer um pós-doutoramento e as primeiras emoções que senti foi que, de repente, estava a cheirar os cheiros da Bélgica. É holístico, não são só os cheiros, é a paisagem, as pessoas, interessou-me bastante o foco das minhas viagens, mas ter conhecido tanta gente humilde, ligada ao campo, deu-me uma perspetiva muito diferente do país e da sociedade em geral..Gostava de repetir? Vai encontrar um país muito diferente... Sim, mas essas pessoas ainda existem. Penso que é muito importante ter essas experiências, sobretudo as pessoas que vivem nas grandes cidades. Acho que se aprende alguma humildade. Não vamos romantizar o rural, mas a verdade é que têm uma forma de estar diferente, apreciam o tempo de uma maneira diferente, têm um ritmo diferente e dão importância a coisas diferentes. Isso ajuda a relativizar as coisas para quem vive nas grandes cidades e está sempre stressado com coisas do dia-a-dia..Quando um homem se questiona.É um homem dado à espiritualidade? A espiritualidade é uma dimensão humana, não tem que ver com a ciência. Há perguntas que se fazem que são mais pessoais... Não sou religioso, não sou católico, mas tenho uma dimensão espiritual que se vai aguçando com a idade. As pessoas perguntam-se o que vão fazer....Está a fazer 50 anos, já se questiona muito? Já me questiono há alguns anos, mas é um pensamento que vai evoluindo....A idade assusta-o? Sim, assusta. Eu gosto de viver! A questão é que nascemos sem ter pedido para nascer, não temos consciência da existência do mundo. Nascemos, começamos a aprender uma série de coisas. Temos uma característica como espécie que é termos consciência. Perdemos qualidades com a idade, mas ganhamos consciência e é complicado, porque ganhar-se consciência de tanta coisa, nomeadamente do planeta, do que é a civilização humana e o seu lugar no nosso mundo, no sistema solar, no universo... Pensar sobre essas coisas e saber que um dia vamos desaparecer é chato!.Os 50 anos são um marco? Acho que sim..Tem filhos pequenos... Tenho, tenho, o mais pequenino tem quase 3 anos. Três, 6 e 9 e depois 23. Tive coragem para ter mais filhos e não me arrependo....Como proporciona aos seus filhos as experiências como as que viveu? Ainda não proporciono porque são muito pequeninos. Eu fui diferente dos meus pais, eles também não são iguais a mim. Viajei muito porque tinha uns amigos, porque era assim, mas tem muito que ver com a independência e com o crescimento precoce. Hoje em dia quem é que deixa o seu filho de 15 anos pegar na mochila e ir à boleia para Trás-os-Montes? Não deve haver muita gente. Tenho objetivos com eles, até de viagens mais laboriosas. Quero ir à Namíbia com eles, alugar um jipe e ter uma experiência na África profunda. Vamos em breve à África do Sul e a Moçambique. Quero muito ir aos Estados Unidos quando o Trump se for embora....Trump, "um zé-ninguém".O Trump é o seu inimigo número um? Não, não, é um zé-ninguém, ele está lá mas não vale nada! Ele não tem dimensão humana para ser inimigo de ninguém, ele é um... Mesmo pessoas que conheço nos EUA que têm a mesma falta de admiração por ele que eu tenho dizem que ele é um palhaço, não é uma pessoa que mereça ser objeto de grande agressividade. É um erro de casting! Está lá e faz estragos... Acabará por cair por ele próprio, não precisa de inimigos, o Trump é inimigo dele próprio..As projeções e as medidas ambientais esbarram sobretudo nas posições políticas... Sim, mas os EUA fazem mossa sobretudo porque retiram a pressão que existe sobre o resto do mundo. Mas a sociedade norte-americana está a adaptar-se às alterações climáticas, basta ver que a empresa líder em termos de transportes elétricos, a Tesla, é norte-americana e, além do mais, libertou as patentes para que todo o mundo os possa usar. Portanto, a sociedade norte-americana é muito mais rica e muito mais dinâmica do que são por exemplo as europeias. O poder que tem o presidente não é suficiente para inibir a sociedade de dar os passos que tem de dar. Em termos de alterações climáticas, os EUA estão a fazer o seu dever, tanto ou mais do que a Europa, apesar da mensagem política não ser essa..Então quais são os grandes erros da Europa? Não são erros, a Europa está a dar os passos corretos. Muitos de nós gostaríamos de que fossem mais contundentes e mais rápidos, há muitas metas para 2030, 2040. Politicamente tem o discurso correto e tenta gerir as suas contradições internas da melhor forma....E depois há as questões do nosso dia-a-dia, como ter carro a gasóleo, que vamos ter de mudar... Estamos numa fase de transição entre uma era e outra. Essa transição podia ser mais ou menos rápida, mas depois tem custos. Para fazermos uma transição do carro a gasóleo para o elétrico há alguns passos tecnológicos a dar, porque tem uma autonomia relativamente baixa. Se eu vier de Madrid a Évora de automóvel, são cerca de 500 km. Neste momento só uma marca tem essa autonomia e é caríssimo. E isso pressupõe que não tenha o aquecimento ligado, que tenha uma velocidade estrita e que a bateria esteja em muito bom estado. Se eu não tiver um posto de carregamento a meio, ou vários, arrisco-me a ficar parado no meio da estrada e ter de chamar o reboque. Portanto, há algumas dificuldades para que essa realidade se faça hoje, mas estamos a caminho. Por outro lado, um carro elétrico não garante que não haja emissões, porque quando pagamos a fatura da luz, se formos ver, há uma grande proporção de eletricidade que é produzida com carvão. Substituir o petróleo pelo carvão não é uma grande solução. Há que trabalhar....Homens e mulheres, somos os agentes da mudança e os culpados por tudo o que possa vir a acontecer. Porque é que as mensagens não passam, porque são à la longue e isso faz as pessoas pensar "isso nem para os meus bisnetos"? É verdade que estamos programados para responder aos estímulos próximos, não somos muito diferentes do Cro-Magnon que vivia nas cavernas ou do africano que saiu de África. Evoluímos num determinado contexto e tudo o que tenha que ver com a planificação de médio e longo prazo é algo que não é instintivo. Quando se fala de alterações climáticas, muitas vezes as pessoas têm a perceção de que é algo distante, há até os que negam, mas, descontando esses, há quem esteja consciente desta trajetória apesar de, como não faz parte do seu dia-a-dia, protelar a tomada de uma decisão. Por outro lado, pensam que será um problema apenas do próximo..Mas a consciência ecológica evoluiu... Sim, não tem nada que ver com os últimos 20,30 anos. Hoje, o cidadão médio é como seria um ambientalista há 30 anos. As pessoas têm uma consciência superior ao que tinham. Também no que diz respeito às alterações climáticas já não é só uma questão de alteração de futuro, elas estão aí..Mais ondas de calor e menos água.As mudanças nas estações do ano são a primeira perceção que o cidadão comum tem das alterações climáticas... As alterações climáticas são complexas e têm padrões muito diversos. Há muita coisa que vai acontecer no que respeita ao rearranjo climático do planeta. Mas em regiões diferentes há indicadores, métricas que são mais específicas. Onde estamos, para ser concreto, o que é mais preocupante não é a subida média das temperaturas nem é que a primavera chegue mais cedo ou que o outono chegue mais tarde, o que é preocupante é haver uma tendência de redução da quantidade de água que cai por ano no país. Até ao final do século projeta-se em 30% essa redução. Uma redução de 30% da disponibilidade hídrica aqui no Alentejo é mau. Depois temos as ondas de calor e eu diria que a seguir à água, ou em paralelo, é a outra trajetória mais preocupante, porque tem uma incidência direta na saúde pública e na transformação total das paisagens..Quando diz saúde pública, refere-se a novas doenças? Pode ser que sim, mas estou a referir-me concretamente ao facto de as pessoas terem de suportar durante dias a fio temperaturas acima dos 40 graus. Vivi a onda de calor de 2003 em França e as temperaturas eram mais baixas do que aqui, mas a humidade era maior. As estatísticas oficiais indicaram que seis mil pessoas morreram nesse ano durante a onda de calor..Pode dizer-se que as alterações climáticas vão trazer mais mortes? Tento evitar pornografia climática, é uma linguagem excessivamente musculada. Não são eu que digo, são pessoas que trabalham com projeções climáticas, eu trabalho a nível dos impactos... Mas dizem os climatólogos que até ao final do século podemos passar de uma situação atual de ondas de calor que duram cerca de cinco dias para quatro ou cinco semanas. No ano passado houve uma onda de calor em que as temperaturas chegaram aos 47 graus à sombra em algumas zonas do país. Foi duro, mas foram quatro ou cinco dias. Agora imagine-se isto em quatro ou cinco semanas. Não dá....Como vamos adaptar-nos? Isto vai para lá da nossa capacidade térmica de suporte. A maneira drástica é que haja migrações. Em meados do século passado houve um período de seca muito extenso nos arredores de Madrid, não havia água para consumo público. As pessoas com mais posses foram para o norte e as que não tinham ficaram lá e muitas morreram. Portanto, a migração é um fenómeno não só humano como biológico em geral e é a primeira medida de adaptação. As pessoas podem decidir "vou sair daqui para outro lugar onde se viva melhor". Depois há medidas menos drásticas, que têm que ver com uma construção arquitetónica mais cuidada, para que as casas tenham uma eficiência térmica de modo a conseguirem suportar ondas de calor..A projeção é que essas ondas de calor cheguem no fim do século? Há um aumento gradual de ondas de calor. A frequência será cada vez maior, cada vez serão mais quentes e mais duradouras..Haverá também novas doenças? Há toda uma linha de investigação sobre a dispersão de doenças emergentes, do tipo tropical e subtropical, que num contexto de aumento de calor se expandiriam para regiões onde atualmente têm condições que são subotimais. Já houve malária em Portugal, o nosso clima permite a malária mas não é ótimo para a malária. Com o aumento das temperaturas, poderá haver algumas doenças do sul que migrem para norte. Mas creio que, salvo algum cisne negro ou alguma doença nova, temos mecanismos para nos adaptar e combatê-las mesmo com as alterações climáticas. Na região do mundo onde estamos, aquilo que é mais preocupante tem que ver com as ondas de calor e com a redução da disponibilidade hídrica, embora para esta última exista soluções tecnológicas, nomeadamente ir buscar água ao mar..O que poderá mudar na paisagem? O aumento da temperatura gradual provoca uma deslocação da vegetação e de forma associada. Numa entrevista ao El Mundo fiz referência a uma certa africanização do sul e a uma mediterranização do norte. Isso é pacífico. Estas ondas de calor de que falámos, se tiverem uma duração superior a um determinado número de dias e temperaturas extremas, podem causar uma transformação de um ano para o outro de elementos da paisagem, basicamente a mortalidade de árvores..E a nível da alimentação também haverá alterações? Sim, penso que tudo o que tenha que ver com as atividades primárias... Eu trabalho em biogeografia, o estudo da distribuição dos organismos vivos no planeta, que se preocupa essencialmente com as espécies selvagens, mas as regras daquilo que estudamos aplicam-se a qualquer organismo vivo, seja uma oliveira ou uma acácia. Qualquer organismo vivo depende de regras físico-químicas básicas. Qualquer agricultor e produtor florestal sabe isso, que determinadas culturas são melhores em determinados sítios, com determinados solos e climas e às vezes tentam compensar isso com adubos e irrigação..Portugal e Espanha demasiado quentes podem afugentar o turismo.Disse que as praias do Mediterrâneo passarão a ser destino de inverno. E as nossas? As do Algarve, eventualmente. A costa atlântica é bastante fresca, penso que se vai manter porque tem condições microclimáticas diferentes do Mediterrâneo. O Algarve está sobre a influência da bacia do Mediterrâneo, mas já é um destino de inverno. Estudar a ligação do turismo com o clima é interessante. Portugal e Espanha têm regiões que podem tornar-se demasiado quentes no verão e isso pode afugentar os turistas, por um lado, mas há outro fator que se sobrepõe a esse também negativamente que é o facto de a Europa Central e do Norte vir a ser mais quente. A pressão para sair de lá por causa do mau tempo vai reduzir-se..O nosso paradigma de férias vai mudar? Sim, vamos ter de diversificar a oferta. Somos e continuaremos a ser um destino de sol. As projeções climáticas para o norte dão aumento de temperatura mas também dão aumento de precipitação, no verão os riscos de cheia vão aumentar bastante na Europa Central e isso pode, de certo modo, contrabalançar. Mas é importante analisar a questão do turismo não só no local, é importante também analisá-la em tudo o que respeita ao mercado turístico, porque o clima não é a única variável mas é uma variável importante..Vamos começar a dividir mais as férias... Os nórdicos já têm a semana branca. Os miúdos não têm aulas no inverno durante uma semana e a tradição é os pais rumarem às Canárias, a Cabo Verde, ao Algarve e ao sul de Espanha, para fazer um corte com o inverno..Começou a ter férias há poucos anos, mas agora não abdica. De maneira nenhuma! Há uns quatro ou cinco anos que tenho férias. Antes, o que às vezes fazia era ir a uma conferência e ficar mais uns dias. Um pequeno break. Mas não tinha um mês de férias. No primeiro mês, quando cheguei ao final, disse: "Isto é giro", até queria fazer outro mês..Conseguiu desligar? Totalmente! Levei livros, romances históricos. Com os filhos pequenos é imperativo desligar..Tem um projeto hoteleiro destinado sobretudo às pessoas da ciência e das artes aqui em Évora. Essa é a parte que não é exclusivamente hoteleira. A visão que está por detrás é a criação de um espaço para residências artísticas e cientificas e sabáticas. Um dos problemas que senti quando fui à Austrália e fiz uma meia sabática foi que cheguei com a minha família e passámos umas duas semanas à procura de onde ficar porque para quatro ou cinco meses não havia casas. Acabei por ficar num aparthotel, senão houvesse não sei como tinha feito, tudo caríssimo... Não dá para alugar uma casa porque os contratos são no mínimo por um ano, a maior parte das casas não estavam mobiladas... Hoje em dia, em ciência, o normal é que se viaje, que se esteja com colegas e em Évora não havia uma estrutura que permitisse isso..Mas também pensou nos artistas, nas pessoas ligadas às artes. As duas áreas cruzam-se? Acho que a ciência e as artes são atividades criativas. Têm métodos diferentes mas ambas, sobretudo a nível do topo dos artistas, dos grandes cientistas, são altamente criativas. Um cientista está sempre à procura de um novo ângulo, uma nova ideia... A ideia era criar um ambiente, um conceito como o do College em Oxford, onde as pessoas podem trabalhar, têm biblioteca, cantina... No fundo, um ambiente em que as pessoas partilhem não um interesse particular mas um modo de vida semelhante. Demora algum tempo a consolidar um conceito como este..Está a ser difícil? Já vou no segundo passo. O primeiro foi a obra, o segundo foi pôr a funcionar do ponto de vista operacional, o terceiro é consolidar o conceito. Há uma equipa criada, acredito na vocação das pessoas e na excelência. Há cinco pessoas a trabalhar, uma delas portuguesa que fui buscar ao Dubai, com toda a vida dedicada a projetos culturais ou hoteleiros, com muita experiência nesta área. Não tenho de gerir, está entregue à Ana Meireles, que é a diretora do espaço..Quando o telefone (não) toca.Ainda não falámos do Prémio Pessoa... Foi importante por ter sido um prémio português, por ser atribuído pela primeira vez na área do ambiente. É um prémio diferente por ser mais popular, os outros prémios que recebi são da área científica e têm impacto nesse área. Mesmo o prémio Rey Jaime I, que é muito importante em Espanha, é dado por áreas temáticas, são cinco. Em Espanha fui o primeiro estrangeiro a recebê-lo. Mas o impacto deste foi maior. Quando Pinto Balsemão anunciou o nome Miguel Bastos Araújo, ninguém sabia quem era e isso é giro!.Foi Balsemão que lhe telefonou? Sim, uma hora antes de ser anunciado. Tentaram telefonar-me na véspera, devia estar a decorrer a reunião do júri. Tenho sempre o telefone no bolso, mas foi um daqueles raros momentos em que não tinha, ficou a carregar na mesa-de-cabeceira, desconectei-me e esqueci-me completamente. É raro isso acontecer, estou sempre conectado. Quando fui dormir tinha 50 mensagens - telefone, WhatsApp, mail, Facebook, sms -, todos os mecanismos de comunicação tinham sido usados por várias pessoas. A pessoa do júri que estava a tentar ligar-me era o professor Viriato Soromenho-Marques e dizia: "Quando vires esta mensagem, liga-me." Só vi mensagem à meia-noite, perguntei se ainda era hora para telefonar e esperei 15 minutos, como não obtive resposta, desliguei o telefone e fui dormir. No dia seguinte tinha uma série de mensagens dele "claro, liga-me". Então falei com ele e depois ligou-me o doutor Balsemão..Tem de aprender a lição, porque um dia podem ligar-lhe da Academia Nobel. Não, não, não... E não há prémio de ambiente..Bob Dylan ganhou o Nobel da Literatura. Eu costumo ter o telefone comigo...