Não se trata de lhes dar o peixe. Nem sequer de lhes dar a cana e ensiná-los a pescar. Isso já sabem e já fazem. Trata-se, muito simplesmente, de os "ajudar a entrar numa lógica de mercado". Os rudimentos do capitalismo, enfim. "Empreendedorismo", assim se chama..Foram guerrilheiros e comunistas. Agora já não são guerrilheiros mas ainda se lembram muito bem de como foi - e continuam comunistas. São colombianos, das ex-Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Oito mil ao todo, famílias incluídas, vivendo em quase uma trintena de acantonamentos espalhados pelo país (os denominados ETCR - Espaços Territoriais de Capacitação e Reincorporação). Lenine e Che Guevara continuam a ser figuras de referência..E há um português, Ricardo Zózimo, 41 anos, professor na Nova SBE (School of Business and Economics), que andou por lá no final do ano passado - e lá voltará - precisamente para formar formadores de empreendedorismo que ensinem os antigos guerrilheiros, agora em paz e com as famílias a crescer rapidamente (a natalidade disparou quando as armas se calaram), a funcionarem na tal "lógica de mercado". Mas sempre - sublinha - "numa perspetiva de sustentabilidade", isto é, de durabilidade do negócio. O projeto é financiado, em 235 mil euros, por uma organização inglesa, o Newton Fund, e por outra colombiana, a Colciencias (o equivalente à nossa FCT)..Ensinar o capitalismo a comunistas? "Não é bem assim. É mais um capitalismo coletivo", diz o professor ao DN. Porque é isso - um profundo sentido coletivista - que marca a diferença destas comunidades em relação a outras onde também levou o empreendedorismo (em Moçambique, por exemplo). A ETCR que o professor visitou na Colômbia e onde trabalhou chama-se Águas Bonitas. Fica no município de Montañita, distrito de Caquetá, mais ou menos no centro do país. A cidade mais próxima (a 32 quilómetros) chama-se Florência..A estrada até Águas Bonitas, em péssimo estado, inibe a circulação. E isso, de certa forma, mantém as "tropas" acantonadas. Em tempos, durante a guerrilha, o município foi retaguarda logística da guerrilha e território para operações de extorsão e de cobrança de impostos revolucionários a quem plantava folhas de coca. Hoje o negócio é a agropecuária e a piscicultura em água doce. E cada comunidade tem uma liderança tricéfala: um líder político, um económico e um social. Exemplo da interação entre estas três lideranças: o líder social diz que é preciso fazer uma escola, o líder político vigia os currículos escolares e o líder económico define como se financia o projeto..Adidas vs. marca FARC.O que significa então esse (aparente) paradoxo chamado "capitalismo coletivo"? Significa, diz Ricardo Zózimo - um católico empenhado que em tempos até admitiu tornar-se padre jesuíta -, que "não há vetor pessoal" nas decisões económicas. Exemplo: um ex-guerrilheiro lembrou-se que tinha um primo que sabia fazer sapatos; foi ter com ele e aprendeu a fazer sapatos. Mas, de volta a Águas Bonitas, nem lhe passou pela cabeça lançar um negócio individual de sapataria. A produção tornou-se comunitária. E os primeiros clientes foram os próprios habitantes da comunidade - porque a guerra acabou e com isso acabou também a necessidade incontornável de usar exclusivamente botas militares. Existiam as capacidades técnicas de produção, a necessidade de consumo e a vontade política de avançar. Existindo isto, pode então o empreendedorismo fazer o seu caminho. Mas como? O certo é que, neste processo de produção de sapatos na comunidade de Águas Bonitas, os ex-guerrilheiros não tiveram melhor ideia do que dar aos sapatos desportivos a marca de Adidas. Pintam o símbolo da marca alemã à mão, sapato a sapato - e fazem-no porque essa é marca de referência naquela que é, provavelmente, a instituição mais unificadora da sociedade colombiana: a seleção nacional de futebol..Um professor como Ricardo Zózimo - formado em Marketing (no IPAM, em Lisboa) e depois em Planeamento Estratégico (em Dublin), além de doutorado em Empreendedorismo (pela universidade inglesa de Lancaster) - pode então sugerir aos ex-guerrilheiros que avancem para outra marca, própria, que não desafie as leis da contrafação. Por exemplo: "FARC", usando o símbolo da organização (uma flor estilizada). E "dar umas luzes" sobre o problema do registo das patentes, ou sobre contabilidade fiscal ou ainda sobre como usar ferramentas informáticas (uma folha Excel) para ir monitorizando a viabilidade comercial de um determinado produto..Pode também incentivar os ex-guerrilheiros a porem ao serviço da sustentabilidade das comunidades - e no futuro, quiçá, da sua autonomização como entidades administrativas próprias - a sua própria memória do que faziam quando combatiam: construindo instalações de turismo ecológico nos terrenos que antes usavam para se esconderem; transformando em roteiros turísticos os trilhos que usavam nas suas operações militares..No que viveu em Águas Bonitas, o professor sentiu "pessoas simpáticas e bem-humoradas", "que não esquecem o passado mas que estão viradas para a frente". E sente-se que a região está "militarmente guardada" mas sem "agressividade". "Não se sente tensão." Mas o que está em causa - acrescenta - "é mais" do que ajudar comunidades de ex-guerrilheiros a tornarem-se duradouramente viáveis. O que acima de tudo valoriza é transformar esta experiência "num sinal claro do que é a paz e de como ela é possível". E isto mesmo sendo o seu "barro" um conjunto de homens e mulheres que passaram uma vida a matar, extorquir e sequestrar concidadãos..Numa (muito católica) palavra: conversão. Esse será o impacto maior. E disso - da avaliação de impactos - sabe o professor. É o que ensina a 400 alunos por ano na Nova SBE. Em inglês: Managing Impact (Gestão de Impactos), cadeira obrigatória nos cursos de Economia e de Gestão da faculdade..O que é ensinar "impactos"? Exemplo (dado pelo próprio ao DN): se lhe tivesse passado pela frente um dia um estudante com a ideia de criar uma aplicação a que chamaria Tinder (uma rede social de encontros amorosos) talvez lhe tivesse explicado como ela poderia ter, a prazo, efeitos devastadores no ego de milhões de solitários em busca de soluções rápidas para a sua vida afetiva. Há estudos feitos - mas essa, enfim, é outra conversa....FARC: de guerrilha a partido político.Depois de 52 anos de conflito armado, o governo colombiano assinou em 2016 a paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), num acordo que valeu o Nobel da Paz ao ex-presidente Juan Manuel Santos. As armas deram lugar à luta política legítima, com a transformação da guerrilha marxista em partido político (apesar de um grupo de dissidentes, com ligações ao narcotráfico, ainda manter a ação violenta). Mas o futuro não parece risonho para a Força Alternativa Revolucionária do Comum. Em maio de 2018, nem chegaram a ter um por cento dos votos e só entraram para o Parlamento (cinco deputados e cinco senadores) porque tal estava previsto no acordo de paz. O partido, como antes a guerrilha, é liderado por Rodrigo Londoño (Timochenko), que desistiu de concorrer às presidenciais por motivos de saúde. O sucessor de Santos no poder foi Iván Duque, que durante a campanha foi um forte crítico do acordo de paz.