Era um mar de gente em domingos de jogo, do Campo Engenheiro Carlos Salema ao Poço do Bispo, à espera dos jornais da tarde que traziam os resultados completos da jornada futebolística. Ali, no Largo David Leandro da Silva, dominado pelos edifícios de duas empresas vinícolas, José Domingos Barreiros e Abel Pereira da Fonseca, ficava também a sede do clube que era a devoção dos milhares de pessoas ali reunidas: o Clube Oriental de Lisboa, equipamento grená, águia sobre escudo com bola no emblema, e que, não obstante o orçamento escasso, chegou a causar amargos de boca aos "grandes", na altura quatro: Benfica, Sporting, Futebol Clube do Porto e Belenenses..Estamos na década de 1950 e nessa multidão, eufórica ou murcha conforme o desfecho da partida, avançam um pai e um filho adolescente, habitantes da Rua de Marvila: Raul da Silva Martins, operário, e Fernando, que em breve acumulará a aprendizagem do ofício de serralheiro na Sociedade Nacional de Sabões (um dos maiores empregadores da zona oriental da cidade) com os estudos na vizinha Escola Industrial Afonso Domingues. "Passava os jogos a tremer, tal era o nervosismo", recorda, tantos anos depois, Fernando Martins, a propósito desses tempos em que o Oriental, tendo estado várias vezes na I Divisão, recebia no seu campo as maiores "estrelas" da época: José Águas do Benfica, Matateu do Belenenses, os cinco violinos do Sporting, entre tantos outros. Mais surpreendente ainda: algumas delas, vindas do Benfica ou do Sporting (com passagens inquestionáveis pela seleção nacional) decidiram terminar as suas carreiras ao serviço da equipa de Marvila..O que justifica tal sentimento, a que, em clubes maiores, se dá nome de mística? Carlos Vitorino, 45 anos, eleito presidente do clube em junho passado (depois de ter sido vice-presidente com o pelouro financeiro na anterior direção) não sabe defini-la com precisão mas recorda bem o momento em que foi "contagiado": "Tinha 5 anos, morava nos Olivais Sul, e o meu avô levou-me a ver um jogo ao Campo Engenheiro Carlos Salema. O ambiente era impressionante, com as bancadas cheias dos adeptos mais aguerridos que se possa imaginar. Nesse mesmo dia, nasceu a minha paixão pelo COL." Numa sociedade (e numa Lisboa) hoje tão diferente, o presidente garante que a dedicação dos orientalistas ao seu clube não esmorece: "Onde quer que nos desloquemos, levamos sempre muita gente. Na época passada terminámos a nossa prestação no Campeonato de Portugal em Angra do Heroísmo e levámos connosco 80 adeptos, o que é excelente para uma deslocação que não é fácil nem barata." João Mendes, há 26 anos no Oriental (primeiro como futebolista e depois como funcionário do clube em diversas funções), veio da Marinha para o Campo Carlos Salema e teve como primeiro treinador Pedro Gomes, antiga glória do Sporting. A primeira impressão foi semelhante: "Fiquei fascinado com o ambiente. Nunca vira adeptos tão incondicionalmente ligados a um clube.".Clube de operários.A identidade particular do COL confunde-se com o contexto geográfico e histórico da sua fundação. Tal como um dos seus eternos rivais, o Atlético Clube de Portugal, com sede em Alcântara (os do "outro lado", como ainda hoje ainda se diz no Poço do Bispo), o Oriental nasceu numa das zonas mais densamente povoadas da capital, em que se acumulavam, como podiam, as famílias do operariado empregue em grandes unidades fabris como a referida Sociedade Nacional de Sabões, mas também a Fábrica de Material de Guerra (hoje Fábrica de Braço de Prata), a Companhia dos Fósforos, a Fábrica Luso-Belga da Borracha ou a Tabaqueira. Uma multidão de homens e mulheres, familiarizada com a escassez, cuja consciência de classe é vigiada pela polícia política e "namorada" pelo Partido Comunista. Encostado ao que viria a ser o Campo Engenheiro Carlos Salema, bem perto da linha férrea, estava o bairro chinês, onde se aglomeravam, em barracas, centenas de pessoas oriundas do norte e das Beiras em busca de uma vida melhor. Mas esta tardava a chegar..Em 1946 (ainda no rescaldo das greves operárias ocorridas em vários pontos do país, todas brutalmente reprimidas pelo regime), o jornal República lança uma campanha favorável à fusão das três coletividades da zona oriental de Lisboa - o Chelas, o Fósforos e o Marvilense - que, semana após semana, se digladiavam entre si ou com terceiros para se manterem à tona de água. Com pouco sucesso, refira-se. Depois de acesas discussões, uma assembleia geral com sócios das três coletividades reúne-se no velho Cine-Pátria, no Beato, a 8 de agosto de 1946. No final da noite, haverá "fumo branco": a multidão ali reunida concordou em dissolver os três clubes num só que receberá o nome de Clube Oriental de Lisboa. Doravante, o seu emblema conjugará a bola do Chelas e o escudo do Marvilense encimados pela águia do Fósforos. Ao centro surgiriam as iniciais: COL..O novo clube rapidamente deu nas vistas: sobre o grená das camisolas, foi a primeira equipa nacional a estampar os números dos jogadores, o que obviamente fez a alegria dos jornalistas que acompanhavam os jogos. A revista Stadium (criada por Cândido de Oliveira) escrevia a propósito: "Não são só os ingleses que fazem destas coisas." Doravante, onde quer que o Oriental fosse acompanhava-o uma multidão e um ambiente de festa, como o jornal O Mundo Desportivo assinala a vitória do Campeonato Nacional da 2.ª Divisão de 1952-53, após uma vitória no Porto, no campo do Salgueiros: "Atravessamos a quadra dos Santos Populares e por vários recantos do bairro se organizam pequenos e pitorescos bailes ao ar livre, cheios de colorido, de tradições e de alacridade (...) quando atroou os ares a notícia da proeza do Oriental transformaram-se por artes mágicas num formidável arraial em que todos se conheciam e abraçavam (...)." A festa prolongar-se-ia até altas horas: "E ao princípio da madrugada de hoje enorme multidão se juntou em Braço de Prata, aguardando ansiosamente a chegada do comboio especial que, do Porto, conduzia os adeptos do Oriental e também os jogadores, os heróis do dia.".Fernando Martins recorda alguns dos ídolos desses anos: Frederico, que morreu muito jovem numa explosão na Fábrica do Material de Guerra, onde trabalhava, França, Pina, mas sobretudo Rogério e Azevedo. Rogério Lantres de Carvalho (1922-2019), também conhecido por Pipi dada a elegância com que gostava de se mostrar, iniciara a vida futebolística no Chelas mas deu nas vistas e tornou-se um dos maiores avançados da história do Benfica (em 1950, foi um dos vencedores da Taça Latina, a primeira grande conquista internacional do futebol português). Mas quando o brasileiro Otto Glória chegou a Portugal para treinar o clube da Luz e impor a profissionalização dos futebolistas, Rogério, a abeirar-se dos 30 anos, não quis dar esse passo. Continuou a vender automóveis e, por insistência do seu irmão, França, voltou ao bairro onde tinha crescido e alinhou no Oriental. "Ainda o vi fazer grandes jogos", recorda Fernando Martins. Uma história não muito diferente é a de Azevedo, por muitos considerado um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre. Depois de 17 épocas de grande brilho no Sporting, acabou a carreira ao serviço do Oriental, sem que nisso houvesse sombra de desprestígio..Mas o jogador mais recordado por Fernando Martins é Alfredo, de alcunha o "Três Pés": "Era defesa central, na época em que cada equipa só tinha um homem nessa posição. Vi-o desarmar avançados de grande renome. Só havia uma exceção: José Águas, do Benfica, passava sempre.".Esses anos dourados, em que, de verão como de inverno, se aguentava estoicamente o desconforto da bancada ("chegávamos a ver os jogos de pé, completamente encharcados, mas ninguém arredava pé", recorda este adepto contemporâneo da fundação) foram também anos de atividade desportiva completamente vigiada pelo regime. Conhecedor da história do clube, João Mendes lembra como a zona oriental de Lisboa, com a sua população maioritariamente operária, estava sob a permanente suspeição da ditadura. Em determinado momento, na direção presidida pelo médico Mário Damas Moura hão de aparecer Albino dos Reis, presidente da Assembleia Nacional, e um brigadeiro da Força Aérea então ainda alinhado com o regime, Humberto Delgado de seu nome. Era a tentativa política de controlar o que se passava no clube e quem em torno dele se reunia..Uma oferta eclética.Ao assumir a presidência do COL, Carlos Vitorino tem dois grandes objetivos: "Retirar a equipa de futebol sénior do Campeonato de Portugal, que é muito abaixo do que podemos fazer, trazê-lo para as ligas profissionais e cativar toda uma nova massa associativa, que se mudou para a área do Parque das Nações e que deve passar a ver-nos como o clube do seu bairro. Temos de fazer essa renovação porque, ao contrário do que acontecia nos anos 1950 e 60, Marvila, Xabregas e o Poço do Bispo já não têm um mar de gente a residir e a trabalhar em fábricas entretanto encerradas." Atualmente com cerca de 2500 a 3000 sócios pagantes, o COL propõe-se pôr a render o capital de simpatia que tem, mesmo entre adeptos dos "grandes", para dar o passo seguinte: melhorar o futebol, naturalmente, mas assegurar o ecletismo das modalidades, que sempre foi apanágio da casa. João Mendes recorda, por exemplo, que o COL é o único clube português que nunca deixou de ter andebol, mas pode falar-se também de voleibol, basquetebol, triatlo, desportos de combate, ginástica e modalidades aquáticas, praticadas na piscina municipal do Vale Fundão. "E também das camadas jovens do futebol, muito observadas por empresários e olheiros dos grandes", sublinha..Profundamente ligado à vida da população dos bairros vizinhos, tempos houve em que, na sede (que é a mesma de sempre), funcionava uma biblioteca muito frequentada e regularmente atualizada. Ali ia-se ouvir música, dançar, dar dois dedos de conversa. Nesses anos 1950, em que de Marvila ao Poço do Bispo era um mar de gente, Fernando Martins começou a levar a namorada aos bailes dos domingos sem futebol. Mas os mais velhos ao verem Leonilde, uma beldade vinda da Baixa da cidade, recomendaram-lhe que a levasse dali, para longe dos olhares cobiçosos dos galãs de fim de semana, que ensaiavam no baile os olhares ardentes aprendidos no cinema. O certo é que ali se desenvolveria um namoro de meninos nascido nos areais da Cova do Vapor. Sem essas matinés dançantes, promovidas pelo COL, é bem possível que não fosse eu a contar-vos esta história de uma Lisboa que já não há. É que Fernando e Leonilde casaram-se e tiveram uma filha. A autora deste texto.