Entre todos os títulos que concorreram à Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2022, Close, do belga Lukas Dhont, terá sido o que mais exemplarmente encarnou a ideia, ou melhor, o desejo de um depurado realismo pensado para as atribulações narrativas deste nosso século XXI (o filme acabou por receber o Grande Prémio, segundo na hierarquia do palmarés do festival, ex-aequo com Stars at Noon - Paixão Misteriosa, da francesa Claire Denis)..Num território cultural minado pela grosseria do Big Brother e da "reality TV", a palavra "realismo" obriga-nos a algum tipo de precisão - de que falamos quando falamos de realismo? A pergunta enreda-se quando, como é o caso, estamos perante um filme em que a subtileza dos afetos, indissociável de um invencível pudor, resiste aos lugares-comuns normativos com que, todos os dias, nos tribunais do espaço mediático, são tratadas, descritas e "julgadas", sem apelo nem agravo, as formas da intimidade humana..Como diz a breve sinopse oficial de Close, "Léo e Rémi, ambos com 13 anos, são amigos desde sempre. Até que um acontecimento impensável os separa. Léo aproxima-se então de Sophie, a mãe de Rémi, para tentar compreender...".Por respeito pelo direito de cada espectador descobrir os acontecimentos da história que o filme conta, importa não explicitar esse "acontecimento impensável". Em qualquer caso, deveremos começar por dizer que a proximidade de Léo e Rémi não é tratada como um "panfleto" sobre as identidades de género, a descoberta da sexualidade ou qualquer outro "tema" que lhe confira o estatuto de "tese" mais ou menos militante..Tal demarcação afigura-se tanto mais importante quanto, todos os dias, assistimos a uma metódica regressão humanista (entenda-se: destruição de coordenadas e valores humanistas) que, no campo do cinema, promove muitos filmes como "mensagens" formatadas e generalistas, alheias às singularidades de cada ser humano..A matéria fulcral de Lukas Dhont é, justamente, o caráter irredutível dos seus anti-heróis. Se, a certa altura, eles surgem como protagonistas de um relação "fechada" no género masculino, porventura homossexual, isso não resulta de qualquer afirmação da sua parte (ou de qualquer sublinhado do próprio filme). Em boa verdade, não há nada de explicitamente sexual na sua alegre cumplicidade. Acontece que essa cumplicidade começa a ser "catalogada" e, nessa medida, reprimida por alguns dos seus colegas, rapazes e raparigas - e convenhamos que não é todos os dias que, recusando qualquer visão "purista" de crianças e adolescentes, um filme arrisca expor assim a violência moral que pode contaminar o próprio espaço juvenil..Daí também que Close não seja um filme à procura de "culpados". É, isso sim, uma narrativa capaz de reconhecer que há uma noção de culpa - dir-se-ia anónima, embora enraizada no tecido social - que, perversamente, irá contaminar a história de Léo e Rémi. É essa culpa, a certa altura insustentável, que aproxima Léo da mãe de Rémi numa sequência de rara intensidade e comoção..Tudo isto é tanto mais envolvente quanto Lukas Dhont filma, literalmente, à flor da pele: discreta, mas contundente, a sua câmara está "ali", como um parceiro casto da intimidade de Léo e Rémi. A luz radiosa de Close confirma a beleza dos gestos e olhares dessa intimidade, ao mesmo tempo que os liberta de qualquer catalogação física, sexual ou moralista..Lukas Dhont estreara-se na longa-metragem com Girl - O Sonho de Lara, também premiado em Cannes, com a Câmara de Ouro da edição de 2018, centrado num caso de disforia de género (condensada na questão do nome da personagem central: Victor que se identifica como Lara). Daí a rotularmos o seu trabalho através de uma qualquer "categoria" na moda - como se o "sexo" existisse num continente autónomo, tematicamente esgotado em narrativas que tendem sempre para uma lógica de tribunal - vai um passo que seria, no mínimo, precipitado..A riqueza e complexidade de cada cena de Close, a começar pela subtil teia de olhares que liga (ou afasta) as personagens, não pode ser dissociada de uma opção cinematográfica que elege os atores como matéria primordial da encenação. Eden Dambrine e Gustav de Waele (como Léo e Rémi) são assombrosos, muito distantes das matrizes, hoje em dia tão poderosas, do infantilismo televisivo. O mesmo se dirá dos adultos, com destaque para Léa Drucker e Émilie Dequenne (as respetivas mães)..Com um discreto, mas sugestivo, detalhe simbólico: Dequenne é uma atriz que descobrimos em 1999, também em Cannes, como protagonista de Rosetta, o filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne que arrebatou a Palma de Ouro. Tendo em conta que a filmografia dos irmãos Dardenne, também belgas, é um território modelar de um realismo visceral, indissociável da vibração muito física dos atores, talvez possamos acrescentar que Lukas Dhont (nascido em 1991) é um dos seus mais brilhantes herdeiros..dnot@dn.pt