Cinemateca celebra a vida apaixonada de Kirk Douglas
O ciclo que a Cinemateca está a dedicar a Kirk Douglas (até dia 23) tem um título carregado de simbolismo: A Vida Apaixonada de Kirk Douglas. Pelo seu significado literal, como é óbvio. Mas também pelo facto de evocar essa obra notável que é Lust for Life (1956) de Vincente Minnelli, entre nós chamado A Vida Apaixonada de Van Gogh. Foi, aliás, o filme que lhe valeu uma terceira nomeação para o Óscar de melhor ator (que nunca ganhou, tendo recebido uma estatueta honorária em 1996).
À beira de comemorar o seu 100.º aniversário (a 9 de dezembro), Douglas tem sido, de facto, um ator que justifica esse epíteto tão clássico e também tão desvalorizado: "maior que a vida". O papel que lhe valeu a sua primeira nomeação, em O Grande Ídolo (1949), pode servir de exemplo modelar (será exibido dia 7, 19.00, e dia 12, 15.30) - sob a direção de Mark Robson, ele assume a personagem de um pugilista cuja ascensão vai sendo pontuada por crescentes contradições morais, tendo como ponto de fuga dramático a (im)possibilidade de alguma forma de redenção.
Nesta perspetiva, podemos considerar que, no pós-guerra, Kirk Douglas, a par de outras figuras muito populares - de Humphrey Bogart a Randolph Scott -, foi um dos protagonistas da reconversão dos modelos tradicionais de heroísmo. Não por acaso, com uma passagem decisiva pelo western, afinal o género que sintetizava todas as mitologias da construção e consolidação da nação americana. Veja-se ou reveja-se o admirável épico que é Homem sem Rumo (1955), de King Vidor (hoje, 15.30), ou ainda Duelo de Fogo (1957), de John Sturges (dia 9, 15.30), evocando personagens lendárias como Doc Holliday (Douglas) e Wyatt Earp (Burt Lancaster).
A par dessa reconversão dos modelos de Hollywood, Douglas surgiu também na linha da frente de um cinema apostado em olhar de forma crítica as chagas sociais. A irresponsabilidade moral e a degradação humana da imprensa de "escândalos", por exemplo: importa redescobrir a obra-prima de Billy Wilder, O Grande Carnaval (1951), para compreendermos como o classicismo americano se distinguiu também pela sua capacidade de olhar de frente uma sociedade em que, a par de um espetacular crescimento económico, se vivia uma drástica reconversão das relações entre o público e o privado (hoje, às 21.30).
Na era das "superproduções"
Tal capacidade crítica envolveu também uma observação contundente, por vezes francamente cruel, dos bastidores da indústria cinematográfica em filmes como Cativos do Mal (1952), de Minnelli, com Douglas a interpretar uma complexa figura de produtor (título recentemente exibido pela Cinemateca, tal como Lust for Life, ambos ausentes deste ciclo).
Era uma conjuntura de muitas e aceleradas transformações, até porque Hollywood começava a sentir os efeitos da concorrência da televisão. Para tentar combater tais efeitos, as "superproduções" de componentes mais ou menos bíblicas foram uma opção fundamental. Douglas surge numa delas, Spartacus (dia 7, 15.30), interpretando a personagem central, mas também com uma importante função de produtor. Estava-se em 1960 e o arranque do filme tinha sido atribulado, levando mesmo ao prematuro abandono do realizador Anthony Mann. A intervenção de Douglas viria a revelar-se decisiva, sugerindo a contratação de um jovem cineasta que ele próprio, como ator/produtor, já ajudara a concretizar um filme de guerra intitulado Horizontes de Glória (1957) - era Stanley Kubrick e, como se costuma dizer, o resto pertence à história...
Entre as propostas do ciclo da Cinemateca estão também dois filmes que podem simbolizar o fim da idade clássica de Hollywood: O Compromisso (1969), de Elia Kazan, e O Réptil (1970), de Joseph L. Mankiewicz (o primeiro no dia 23, 22.30; o segundo nos dias 16, 22.30, e 23, 15.30). Kazan encenava os seus próprios fantasmas numa narrativa friamente autobiográfica, enquanto Mankiewicz desmanchava, com implacável sarcasmo, todas as regras do western - e Kirk Douglas estava no centro disso tudo.