Na véspera do início do julgamento, o tom foi dado pelo próprio Charlie Hebdo, ao republicar na capa as controversas caricaturas de Maomé, mas também pelo editorial do diretor, Riss: "Nunca iremos curvar-nos. Nunca desistiremos."."Aproximo-me deste julgamento notando com amargura uma grande ausência no banco dos réus: a ideologia que levou a este ataque. Não é possível considerar os crimes terroristas como crimes comuns. Por conseguinte, é importante para mim que se diga que este ataque não é um crime de direito comum, mas um crime político e ideológico", disse por sua vez a então jornalista do Charlie Hebdo Zineb El Rhazoui..Noutro texto assinado pela redação, lê-se que agora era o momento certo para republicar as caricaturas e "essencial" à medida que o julgamento se abre, devido ao seu valor histórico e penal, enquanto provas de condenação. "Pediram-nos frequentemente desde janeiro de 2015 que imprimíssemos outras caricaturas de Maomé. Sempre nos recusámos a fazê-lo, não porque seja proibido - a lei permite-nos fazê-lo - mas porque havia necessidade de uma boa razão para o fazer, uma causa com sentido e que traga algo para o debate", lê-se ainda..Catorze pessoas vão ser julgadas por terem prestado assistência logística e financeira aos jihadistas franceses que assassinaram 17 pessoas no espaço de dois dias, incluindo oito membros da equipa editorial do Charlie Hebdo. Enquanto gritavam "Allahu akbar", os irmãos Kouachi mataram, no dia 7 de janeiro de 2015, os cartoonistas Cabu, Charb, Tignous, Honoré, Wolinski, os cronistas Bernard Maris e Elsa Cayate e o revisor Mustapha Ourrad. Além deles, foram também executados um polícia que estava na redação para proteger o diretor, Charb, um funcionário da manutenção, um amigo dos cartoonistas que fora visitá-los e ainda dois polícias fora da redação..O julgamento, adiado vários meses devido à pandemia do coronavírus, decorrerá no Tribunal Criminal Especial de Paris até 10 de novembro e, pela primeira vez num caso de terrorismo, as audiências serão filmadas para fins de arquivo..O procurador nacional antiterrorismo Jean-François Ricard rejeitou a ideia de que se tratava apenas de "pequenos ajudantes" a serem julgados, uma vez que os três atiradores estavam agora mortos. "São indivíduos que estão envolvidos na logística, na preparação dos eventos, que forneceram meios de financiamento, material operacional, armas, uma residência", disse à rádio France Info..Dos 14 arguidos, três estão desaparecidos. São eles Hayat Boumeddiene, de 32 anos, a mulher religiosa de Amedy Coulibaly, e os irmãos Mohamed e Mehdi Belhoucine, de 33 e 29 anos, que têm escapado a mandados de captura internacionais desde que fugiram juntos para a Síria nos dias anteriores aos ataques. Um antigo estudante de Engenharia, o mais velho dos irmãos Belhoucine, Mohamed, é considerado pelos investigadores como o mentor religioso de Amedy Coulibaly..Je ne suis Charlie.Je suis Charlie foi um mantra repetido vezes sem conta nos dias seguintes ao horror. Meio mundo solidarizou-se com as vítimas da chacina na manhã de 7 de janeiro de 2015 na redação do Charlie Hebdo, o restante meio fez de conta que sim. Não durou muito essa falsa união. A publicação, que se manteve coerente com os seus princípios - foi fundada em 1970 com o desígnio de ser "animalesca e perversa" -, foi condenada pelo Conselho Francês da Fé Muçulmana após a publicação do número seguinte, feita pelos sobreviventes, e em cuja capa uma figura tida como o profeta Maomé segurava uma faixa com a frase "Está tudo perdoado". Nas escolas, foram reportados 200 incidentes, entre os quais a apologia ao terrorismo e a incitação ao ódio, durante o minuto de silêncio em homenagem às 13 vítimas mortais às mãos dos irmãos Kouachi..Para a jornalista Zineb El Rhazoui, que não figura entre as vítimas porque naquele dia estava de férias na Casablanca natal, nada está perdoado. Em entrevistas ao Le Figaro e ao L'Express, a ativista pelo laicismo, que deixou de colaborar com o Charlie Hebdo, não embarca em perdões.."Não perdoo todas aquelas pessoas, todos aqueles islamistas que ainda andam por aí e continuam a pregar o mesmo ódio. Lembro-me de todos aqueles que contribuíram para o isolamento e a descida do Charlie ao inferno. Eles têm uma responsabilidade moral pelo destino do Charlie." Zineb refere-se aos anos que precederam o atentado de 2015..Em 2006, o semanário reproduziu as caricaturas que foram originalmente publicadas no ano anterior pelo dinamarquês Jyllands-Posten e que tinham causado tumultos em vários países e boicotes a empresas da Dinamarca. Na sequência da publicação fundada por Choron e Cavanna, o Charlie Hebdo teve de se defender em tribunal (ganhou o processo, tal como antes acontecera com queixas de organizações católicas), mas as instalações foram alvo de um incêndio de origem criminosa em 2011 e de um abaixo-assinado que era na prática uma condenação de um grupo de intelectuais, que acusou os cartoonistas e jornalistas, "que não tiveram espaço nos principais meios de comunicação", de "islamófobos".."Será normal que cinco anos após este horrível crime, este horrível revés para a liberdade de expressão e mesmo para a cultura francesa, ainda exista em França um grupo contra a islamofobia que recebe financiamento público ou europeu e distribui a acusação de islamofobia a uns e outros, colocando assim os alvos nas suas costas? Não devemos esquecer que se as pessoas do Charlie foram mortas foi porque foram acusadas de islamofobia, um delito que não existe na lei francesa", continuou Zineb, que recordou a sua situação. "Será normal que, quase cinco anos após este ataque, eu ainda ande com homens armados no coração de Paris quando sou uma pessoa pacífica, quando nunca fiz mal a uma mosca, quando nunca infringi a lei e quando estou no meu próprio país?"."Os irmãos Kouachi ganharam".Também o advogado de sempre do Charlie Hebdo (ou quase, desde a segunda vida do semanário, 1992), Richard Malka, está desde o atentado de 2015 sob proteção policial. Em entrevista ao Le Point, o causídico não tem dúvidas: "Os irmãos Kouachi e aqueles que os armaram ganharam, sim... Quem iria publicar hoje as caricaturas de Maomé? Que jornal? Em que sala, em que filme, em que livro alguém se atreveria a criticar o islão? Quem durante os últimos cinco anos?".Malka, que estará em tribunal na defesa da empresa editora, Éditions Rotative, não tem dúvidas de que o espírito Je suis Charlie há muito desapareceu. "Sim, a situação é muito pior do que era há cinco anos. Não passa um mês sem que alguém seja impedido de intervir nas universidades francesas: François Hollande, Sylviane Agacinski, Mohamed Sifaoui, Alain Finkielkraut, representações de obras antigas ou de Charb... Aprendizes talibãs da Unef [associação de estudantes] ou de associações obscuras opõem-se à sua expressão e à liberdade de criação", lamenta..Zineb, autora do livro Détruire le Fascisme Islamique, questiona a forma como a sociedade não reage à ameaça do totalitarismo islâmico. "Por vezes pergunto-me como teria sido se, após a Segunda Guerra Mundial, tivéssemos continuado a julgar os crimes nazis como crimes comuns, enquanto continuávamos a permitir peças, livros, associações nazis. Isso teria sido monstruoso, e é exatamente isso que estamos a fazer com o islamismo quando é uma ideologia que cometeu crimes em massa. Uma ideologia que visa todas as nossas conquistas democráticas, as nossas liberdades. Esta é uma armadilha filosófica que eu denuncio."