Cimeira do clima. Desafiar os grandes poluidores e seduzir o setor privado
O presidente dos Estados Unidos vai aproveitar a abertura dos trabalhos da cimeira virtual sobre o clima, que decorre hoje e amanhã, e na qual vão participar mais de 40 dirigentes mundiais, entre os quais os líderes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, para anunciar as novas metas do país no que respeita aos cortes de emissões de dióxido de carbono. Espera-se que Joe Biden anuncie um corte de 50% em relação aos níveis de 2005 a alcançar nos próximos nove anos. Mas a cimeira é também a oportunidade para comprometer o setor privado no combate às alterações climáticas.
A nova meta dos Estados Unidos, a confirmar-se, representa quase o dobro do que Barack Obama havia firmado (entre 26% e 28% de corte nas emissões) no Acordo de Paris, em 2015. Segundo o The Washington Post, a Casa Branca estaria ainda a considerar "uma gama de objetivos", pelo que a meta de 50% poderia ser revista em alta. Em 2020, as emissões já estariam 21% abaixo do nível de 2005, embora em parte devido ao abrandamento causado pela pandemia.
O compromisso confirma também a importância do tema para a atual administração, em contraste absoluto com a anterior, que havia retirado o país do acordo, apostado nas energias fósseis e cujo presidente, Donald Trump, alegava que a energia eólica matava os pássaros e causava cancro.
A cimeira virtual tem a ambição de colocar os Estados Unidos - "um gazeteiro que voltou às aulas", como comentou a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) da China - na dianteira da corrida contra o tempo e cumprir-se o desígnio de a temperatura do planeta não aumentar 2 ºC, um valor que os cientistas consideram catastrófico.
A iniciativa decorre ainda nos primeiros 100 dias da administração Biden-Harris, confluindo com um plano doméstico de reconversão económica e social através de um pacote de infraestruturas avaliado em dois biliões de dólares. "Pretende-se atender ao momento em que nos encontramos", disse a conselheira sobre o clima da Casa Branca Gina McCarthy, reiterando que o objetivo é caminhar para uma sociedade descarbonizada investindo nas cidades mais atingidas pelo desemprego e pela falta de investimento.
Apesar da presença de líderes de outros países responsáveis por 80% das emissões globais, não é de esperar que outros sigam o exemplo de Joe Biden e anunciem objetivos mais ambiciosos.
Na véspera, Pequim confirmou a presença do presidente chinês Xi Jinping, o qual irá fazer um "discurso importante", segundo o MNE chinês. John Kerry, enviado especial para o clima dos EUA esteve em Xangai em negociações com os chineses e tem repetido que as metas de Pequim são "insuficientes", pressionando o regime a mudar de estratégia, que assenta em atingir o pico de intensidade carbónica em 2030 e a partir daí reduzir a zero em três décadas.
"Temos de começar a reduzir significativamente agora. É isso que a ciência nos diz. Portanto, 2020 a 2030 é um período de tempo crítico", afirma o ex-secretário de Estado norte-americano. No entanto, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Le Yucheng, lembrou na semana passada que o seu país tem uma política própria de combate às alterações climáticas e que anunciar novas metas "não é realista".
A Rússia de Vladimir Putin, um dos maiores produtores de petróleo e gás do mundo, reconheceu a necessidade de responder "aos desafios das alterações climáticas". No discurso proferido ontem sobre o estado da nação, o presidente russo não se comprometeu com qualquer meta específica, exceto a de que as emissões russas "sejam inferiores às da União Europeia". Putin apelou ainda para a criação de uma "indústria para a utilização das emissões de carbono".
A presidência portuguesa do Conselho da União Europeia antecipou-se à reunião e anunciou o acordo com o Parlamento Europeu para reduzir em 55% as emissões até 2030, uma meta que recebeu as críticas dos ambientalistas. Os eurodeputados dos Verdes denunciaram que graças a truques de contabilidade o corte real será de 52,8% de emissões.
"Note-se que a meta de redução de emissões de "pelo menos 55% para 2030" não está de acordo com a ambição do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C, dado que só uma redução de 65% entre 1990 e 2030 pode conduzir-nos a esse caminho", adverte a associação Zero em comunicado. Já a Associação Natureza Portugal, associada à World Wide Fund for Nature, lamenta a "desoladora" futura lei europeia do clima, onde está enquadrado o acordo do corte de emissões.
Também o Reino Unido se antecipou à cimeira e anunciou na terça-feira um corte de 78% das emissões até 2035.
Enquanto o presidente brasileiro Jair Bolsonaro participa na conferência depois de ter pedido mil milhões de dólares para reduzir a desflorestação em 40%, uma carta dirigida a Joe Biden e assinada por artistas e músicos brasileiros e internacionais, como Caetano Veloso, Sonia Braga, Roger Waters ou Leonardo DiCaprio, pede para o presidente norte-americano não fechar qualquer acordo com Bolsonaro enquanto este não reverter a desflorestação da Amazónia.
Sinal de uma sociedade dividida, 24 dos 27 governadores do Brasil entregaram uma carta ao embaixador dos Estados Unidos em Brasília, na qual propõem parcerias na área ambiental entre os estados e Washington. De notar, contudo que dois dos três governadores que ficaram de fora são de estados na Amazónia, Roraima e Rondónia.
A cimeira dos EUA diferencia-se das conferências das Nações Unidas, como a COP que vai decorrer na Escócia em novembro, porque pretende seduzir o setor privado para a descarbonização, embora algumas empresas já se tenham associado, caso do Compromisso Climático, que envolve mais de 100 grandes empresas, em chegar à neutralidade carbónica em 2040, ou uma aliança global de 43 bancos, que pretende atingir o objetivo em 2050.
"Muitas das negociações sobre o clima têm-se concentrado exclusivamente nos recursos governamentais e a agenda aqui é, em parte, alargar esses recursos e pensar realmente no capital privado e em como esse capital privado, talvez misturado com alguns recursos governamentais, pode aumentar substancialmente a capacidade financeira global para enfrentar o [tema do] clima" disse um funcionário da Casa Branca ao The Washington Post.