A sensação que se tem ao aproximarmo-nos, de carro, da serra da Neve é a mesma que temos nos barcos em alto mar ao vislumbrar uma ilha. O contraste na paisagem é evidente", conta Luís Ceríaco, curador-chefe do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP). Habituado a expedições naquela região do continente africano, o biólogo há muito identificou o potencial de biodiversidade escondido na serra da Neve, em Angola, uma cadeia montanhosa coberta pela vegetação da floresta de Miombo que emerge em contraste com a aridez das savanas circundantes. Agora, vai poder explorar uma das zonas mais misteriosas do continente africano, graças a uma bolsa atribuída pela prestigiada National Geographic Society.."Uma espécie de oásis de vegetação a flutuar no deserto", descreve a nota da Universidade do Porto sobre o palco da próxima aventura do investigador eborense, que soma expedições e descobertas de novas espécies por territórios africanos. Como o minúsculo sapo sem ouvidos que Luís Ceríaco descobriu em 2016, precisamente na serra da Neve à qual o biólogo vai voltar agora com um projeto mais ambicioso: documentar toda a biodiversidade desconhecida deste local tão apetecido para os cientistas.."A serra da Neve é o segundo ponto mais alto de Angola, com quase 2500 metros de altitude, numa região em que tudo à sua volta está a apenas 500 ou 600 metros de altitude, muito árido, desértico. E ali, no meio, há aquela serra com uma floresta muito densa, húmida, que funciona como uma espécie de ilha em relação à paisagem circundante", conta Luís Ceríaco ao DN..É esse isolamento geográfico e ecológico que torna esta cadeia montanhosa tão promissora para os naturalistas. "As ilhas são fundamentais para a diferenciação das espécies, porque os animais e as plantas têm de se adaptar a condições diferentes do que há à sua volta e por isso distinguem-se", explica o explorador, que se propõe estudar a fauna e a flora locais, tentando descobrir (mais) espécies endémicas da serra da Neve. O potencial do projeto convenceu a National Geographic Society, que lhe atribuiu uma das bolsas anuais destinadas à exploração de novas espécies..Luís Ceríaco vai fazer um levantamento, "o mais exaustivo possível, de vários grupos taxonómicos - de plantas a insetos, mamíferos, aves, anfíbios e répteis", entender as relações entre as espécies e o meio ambiente e, assim o espera, identificar novas espécies. "Já fizemos algum trabalho na zona envolvente, em duas missões exploratórias anteriores, e só nessas duas expedições encontrámos três espécies novas [entre elas o tal sapo pigmeu sem ouvidos]", recorda o investigador. E nessas expedições o eborense procurava apenas répteis e anfíbios. Agora, o espectro da pesquisa é bastante mais alargado. "Espero que entre mamíferos, insetos e plantas possamos descobrir muitas mais", diz..Eborense, de 33 anos, Luís Ceríaco desde cedo se habituou "à bicharada", como o próprio lembrou em entrevista ao DN em janeiro. Filho de professores de Biologia, a paixão pelo estudo dos animais acabou por ser uma coisa natural. Especializou-se em herpetologia (répteis e anfíbios) e tem descoberto várias novas espécies para a ciência nas suas expedições - no total, já conta 27. Em 2020, foram mais de uma dezena, entre elas uma que ganhou eco universal: uma serpente venenosa a que deu o nome do vocalista dos Metallica, James Hetfield..Um cientista entre cobras e lagartos numa corrida contra o tempo. "E nós estamos a perdê-la".África tem sido o seu campo preferencial de expedições e descobertas. "África sempre me fascinou, sempre foi o sítio onde me via a trabalhar. Há outros hotspots de biodiversidade no mundo, como a Amazónia, ou o Sudeste Asiático... mas, não sei porquê, sempre tive fascínio por África. E depois, dentro de África, a África lusófona sempre me atraiu por vários pontos de vista: Angola é dos países mais biodiversos do continente, tem desde florestas tropicais no norte do país até ao deserto mais antigo do mundo no sul [Namibe]", explicava nessa entrevista..Agora, espera que o trabalho desta expedição à serra da Neve possa ser convertido num "inventário geral da biodiversidade" daquele local, o que "nunca foi feito até hoje, apesar de desde há muito, nos escritos sobre Angola, a serra da Neve aparecer descrita como um local de grande potencial biodiverso". O objetivo é que esse inventário sirva para apoiar a criação de uma área protegida no local..A "aventura" de Luís Ceríaco deve ocorrer em "finais deste ano [2021], se a evolução da pandemia e da vacinação deixar", e a equipa liderada pelo curador-chefe do MHNC-UP vai incluir "dez investigadores, entre angolanos, portugueses, americanos e alemães", num mês intensivo de campo. Até lá, é tempo de ir antecipando os desafios de logística ("provavelmente subiremos parte da serra de carro ou alugaremos um helicóptero que nos deixe lá em cima, porque os acessos não são fáceis") e preparando os riscos, a que já está habituado: "Desde animais venenosos a dificuldades de terreno, condições climatéricas (tanto faz muito calor como pode chover muito) ou doenças provocadas por parasitas, como a malária. Esses são os riscos principais, porque a serra não tem animais de grande porte, como elefantes ou leões.".rui.frias@dn.pt