Quando instituições de combate à intolerância promovem novas formas de sectarismo vemos como a liberdade e o respeito são valores frágeis, sempre em risco. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que tem a meritória função de lutar contra a discriminação de pessoas, esqueceu-se de que absolutizar qualquer valor, por louvável que seja, conduz ao fanatismo e intolerância, acabando por destruir o que diz defender..Existe uma grave dificuldade conceptual na noção de tolerância, que tem gerado muitas confusões: ela define-se, não no conteúdo, mas na forma. Todos temos coisas que consideramos intoleráveis. Por isso, uma pessoa tolerante é não aquela que tolera tudo, o que seria mentecapto ou monstruoso, mas quem respeita os que defendem posições que considera intoleráveis. Agredir quem tolera algo que achamos inaceitável é intolerância. Como disse John Locke na sua Carta sobre a Tolerância (1689), "qualquer igreja é ortodoxa para si própria, errada ou herética para as outras" (Edições 70, p. 98). Por isso, "as leis não velam pela verdade das opiniões, mas pela segurança e integridade dos bens de cada um e do Estado" (p. 113)..Uma das marcas mais odiosas de intolerância é a queima de livros. Foi isso que fez a recente polémica à volta do "Parecer técnico sobre os conteúdos dos blocos de atividade para rapazes e para meninas dos 4 aos 6 anos - Porto Editora (2016)" da referida comissão. É verdade que aqui não existiu uma sessão pública de incineração, mas retirar de circulação é ainda mais drástico do que deitar exemplares à fogueira. Dizer que a comissão se limitou a apresentar uma "recomendação" acrescenta hipocrisia à intolerância. É evidente que a editora, fortemente envolvida em livros escolares, só suportou a perda do investimento, abatendo os volumes, pela ameaça implícita na tal recomendação..Não está em causa o valor da igualdade de género, nem a qualidade dos livros em análise, mas a actuação da comissão. Não podem existir dúvidas de que o dito organismo interpreta o seu mandato de forma fundamentalista. O parecer diz explicitamente, acerca da publicação de livros diferentes para rapazes e meninas: "Esta segregação contraria o princípio de igualdade de oportunidades independentemente do sexo a que se pertence" (p. 3). Ora, publicar livros não gera segregação nem desigualdade de oportunidades, pois os textos estão acessíveis a todos. Deste modo, a comissão condena por segregação toda a sociedade, dos tipos de champô às casas de banho públicas ou anúncios e secções nas lojas de roupa, brinquedos, etc..Adiante afirma: "A escolha deste tipo de imagens diferenciadas para meninas e para meninos acentua estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens na nossa sociedade" (p. 4). Aqui faz uma extrapolação arbitrária das imagens para a desigualdade. Consegue provar esta implicação? Diferença não é necessariamente desigualdade e desigualdade não tem de implicar injustiça. Desta forma condena toda a cultura mundial, há milénios cheia dessas imagens e supostos "estereótipos"..O referido parecer consubstancia assim uma posição extremista e radical, afirmando um valor de forma absoluta. Mas isso tem de ser admissível numa sociedade livre. O que gera intolerância é o uso do aparelho de Estado para impor tal extremismo. Numa sociedade democrática, cada um pode pensar o que quiser, desde que não force os outros. Assim, a Comissão para a Cidadania agrediu a cidadania..A nossa sociedade foi construída sobre os princípios da liberdade, igualdade e tolerância, repudiando velhas controvérsias e perseguições. Apesar dos grandes avanços conseguidos, a previsão de Voltaire, no seu Tratado sobre a Tolerância (1763), mostrou-se ingénua: "A controvérsia é uma doença epidémica que está a chegar ao fim; e essa peste, de que estamos curados, já não pede senão um regime brando" (cap. V; Antígona, p. 50). A cada momento surgem temas onde a intolerância fermenta, repetindo velhos facciosismos. Aliás, nestes tempos turbulentos, eles sobem em todo o lado..O antigo moralismo das nossas avós ressurge hoje nos discursos de muitos que se dizem tolerantes, mas passam a vida a ralhar ao mundo. Há 200 anos era blasfémia e lesa-majestade, há cem era álcool ou racismo, hoje é discriminação de género, tabaco ou lixo por reciclar. Os temas variam, mas o que distingue as pessoas é o respeito pelos opositores. Muitos, cheios da sua razão e com excelentes intenções, agridem quem acusam de intolerantes, caindo assim em pior intolerância. Normalmente, pretendem acudir aos que consideram vítimas, mas sacrificando outros..Em áreas como ambiente e sexo surgiu mesmo uma lógica de pensamento único, onde alguns iluminados, para mais defendendo posições extremas, querem impor a sua opinião de forma totalitária, em nome da liberdade, igualdade e tolerância. Defendem excelentes valores, mas atacam a cidadania.