Chuva

Publicado a
Atualizado a

Ouço o piano de Soldier"s Things, com que acordo todos os dias, e estico a mão para o telefone. A primeira coisa de que me apercebo é um peso na cabeça, como se impendesse sobre mim algum escombro. Lembro-me de ter ficado a ler até tarde, mas não tanto assim. A segunda é o som de pneus pisando o asfalto molhado.

Chove. Chove bastante, e nem a Catarina, tão mais enérgica a esta hora, se mexeu ainda.

Passam mais dois automóveis. O primeiro produz o som metálico dos ligeiros a gasóleo, o segundo uma espécie de rumor - uma carrinha de transporte, talvez, ou um Fiat antigo. Depois há vários minutos sem carros e a seguir uma sucessão deles, regulares, que muitos miúdos entram às oito.

Apuro o ouvido: a Jasmim já anda pelo corredor, não tarda o Melville está a tentar abrir a porta da cozinha. Depois ela corre até à janela da frente, porque lá em baixo passa um homem de botas - o Sr. Dimas, a caminho da venda do Roberto -, e ele começa de facto a tentar juntar-se-lhe.

Eu deixo-me ficar, no escuro. Ouço apitar ao longe. Os automóveis desaparecem de novo, durante muito tempo agora, mas voltam a passar quando se aproxima o horário da função pública. Imagino famílias melancólicas. Quase não chove, agora - pingos esparsos apenas, água acumulada nos beirados.

Eu continuo ali.

A urbana vem e vai, levando os adolescentes silenciosos - o Fábio, a Jéssica, aquele garoto do Caminho d"Além. Passa o Américo. Uma carrinha arrodeia: o filho do Galão, a deixar o pai. O Poeira desce da Fonte Faneca, com os seus passos miúdos. O vizinho Rebelo sai para as vacas. Bilhas de leite chocalham na camioneta. Um cão ladra, mas nem a Jasmim nem o Melville respondem.

E eu continuo ali ainda, à espera de ouvir passar a carrinha do pão e o carteiro. Talvez com a carrinha do pão e o carteiro me sinta com forças.

neto.joel@gmail.com

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt