"Cheguei a temer que ela morresse de saudades"

Durante mais de dois meses as visitas aos Lares estiveram suspensas. Esta segunda-feira muitos idosos voltaram a ver filhos e netos, mas ainda sem beijos nem abraços. É gerir a distância, que agora se encurtou um pouco.
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Maria Isabel Leitão Jerónimo faz hoje 84 anos. O melhor presente foi ver três dos seus cinco filhos: Isabel, Dulce e Nídia, mesmo que à janela, nas instalações do Lar Rainha Santa Isabel, em Pombal, onde mora desde novembro. Continua vaidosa, sorri com toda a felicidade de cada vez que uma das filhas assoma naquele quadrado para a rua. Passaram dois meses desde a última vez que ali entraram visitas, e por isso nesta segunda-feira é duplamente dia de festa. A meio da tarde, filhas, filho e todos os netos hão de juntar-se em videochamada para lhe cantar os parabéns, neste que é o primeiro dia de desconfinamento para Lares de Idosos.

Isabel Nunes, filha, viu a mãe a última vez no início de março, antes de serem suspensas as visitas nos Lares de Idosos. A partir daí foi gerindo as saudades e a distância da melhor maneira que conseguiu. Mora na Nazaré, e por isso já estava habituada a falar ao telefone com a mãe, ao invés de presencialmente. "Houve semanas em que lhe telefonava todos os dias, e assim fomos andando", conta Isabel ao DN. Ao princípio, a adaptação da mãe não foi fácil. "Ela era muito independente, estava habituada a viver sozinha". Mas "caía muitas vezes, e chegou a uma altura em que percebemos que o melhor era estar aos cuidados de um Lar, como este, em que conhece muitas das pessoas que aqui estão". Começou por receber apoio domiciliário, também através da Santa Casa da Misericórdia, e as filhas revezavam-se para lhe prestar outro apoio, contando que uma delas mora na Suíça e outro na Alemanha. Mas "chegou a uma altura em que já não estávamos descansadas, foi quando ela veio para o Lar". Isabel ainda consegue dar uns passos, mas só acompanhada. "Os corredores aqui são muito longos, ela não consegue sozinha". Ao longo dos últimos dois meses, em cada chamada telefónica dava mostras de perceber bem tudo o que estava a acontecer no mundo lá fora, com a pandemia. "Acabava sempre os telefonemas a fazer-me recomendações, para eu ter cuidado. Acho que percebeu que aqui estava muito mais protegida", diz a filha.

Isabel está já sentada numa poltrona, na biblioteca do Lar, quando chegam a filha e o genro. É a primeira vez que vê de perto alguém da família, tal como todos os 76 utentes deste Lar, onde "felizmente não houve nenhum caso de covid-19", conta ao DN Célia Oliveira, diretora técnica da instituição, que cedo fez o teste para a covid-19, à semelhança dos 62 funcionários.

Ao longo de todo este tempo houve um caso que a marcou, particularmente: o de uma idosa, de 85 anos, que diariamente recebia a visita da filha, e que de repente, quando se viu privada desse contacto, acredita que era a filha que estava doente. "Esta senhora era de Anadia, não conhece ninguém em Pombal, e tinha uma grande cumplicidade com a filha - que era professora aqui na cidade. No início de toda esta pandemia, ela perguntava-se constantemente "mas porque é que isto foi acontecer", como se a doença tivesse atingido a filha, e fosse essa a razão de não ser visitada". Célia lembra-se bem de "todo a expressão ser assustadora, o olhar triste. Temi muitas vezes que aquela senhora morresse de saudades".

A filha desdobrava-se em contactos com a mãe, sob as mais diversas formas. Fazia telefonemas, videochamadas, postais - à moda antiga. No lar, as funcionárias iam acompanhando essa tristeza, que foi mais fácil de gerir noutros utentes. Isabel, por exemplo, contava às filhas o que ia fazendo, até quando jogava às cartas.

O olhar, basta o olhar

O padre Paulo Simões, 38 anos, não via a mãe desde o início de março. Albertina Oliveira tem apenas 75 anos, mas um conjunto de doenças fá-la parecer muito mais velha, debilitada, "muito fragilizada", sobretudo a nível cognitivo, como o próprio filho adianta. Nunca foi conclusivo o diagnóstico, mas além dos problemas físicos, da parte óssea, há uma demência que se vai acentuando. "Inicialmente não me reconheceu, por causa da máscara, mas depois sim. Conseguimos manter essa vinculação que era para mim importante. E que eu receava perder, dadas as fragilidades da minha mãe", admite ao DN o filho mais novo.

Natural de Penacova, Albertina foi morar para Pombal com a filha do meio, que entretanto adoeceu e veio a falecer, antes dos 40, vítima de cancro. Começou por frequentar o centro de dia, mas "os bons cuidados que recebia da Misericórdia passou a ter a tempo inteiro, no Lar", sublinha o filho, que atualmente trabalha na pastoral universitária, em Coimbra.

Os tempos de pandemia foram controversos, para esta família. "Por um lado foi um tempo de muito medo...era grande a incerteza, as notícias eram muito más nos lares. Mas foi também um tempo de confiança nos profissionais, que foram extraordinários". Paulo ligava diariamente para o Lar, para saber como estava a mãe. Contou os dias, até finalmente o seu olhar poder encontrar o dela. E mesmo sem palavras, mataram saudades.

Gerir a distância

Desde há dois meses que a valência de Centro de Dia foi transformada em apoio domiciliário. "Todos os dias temos 10 funcionárias na rua a prestar esse apoio a quem está em casa. Já tínhamos 57 pessoas antes da pandemia, passámos a ter mais 32 desde março. De repente, ficámos com 92 pessoas nesse regime de apoio", sublinha Célia, que reconhece ter sido "muito difícil" gerir todo o processo de mudança que atingiu o Lar. À medida que a pandemia avançou, e que a doença se instalou em tantos lares do país, crescia o medo. Nesse tempo, assolava-lhe a toda a hora um pensamento: "e se algum fica doente? Corremos o risco de ficarem todos". Foi por isso que decidiram testar toda a equipa técnica. "Felizmente, nenhuma de nós era positiva".

Gerir a distância das famílias também foi uma arte. Célia Oliveira revela que a diversidade de origens, estratos sociais e personalidades é difícil de conciliar. Desde há uma semana que o Lar da Misericórdia começou a permitir visitas, embora com muita cautela e todos os cuidados: os utentes ficam numa sala, com uma janela para a rua, e é através dessa abertura que veem os filhos ou outros familiares. Pelo portão do lar só entram duas pessoas de cada vez, de máscara, e assim ficam, à distância de uma abertura da janela. Há sempre uma funcionária que acompanha os utentes, embora isso "nem sempre seja bem encarado". "A ideia é travar a troca de objetos, por exemplo. Algumas pessoas interpretam-no como invasão de privacidade, mas nós entendemos que é preferível, por se tratar de uma medida de segurança. E essa é primordial. Não é altura de baixar a guarda", refere Célia Oliveira. Psicóloga de formação, sabe que "as saudades são imensas". "Podia ser o nosso pai ou a nossa mãe, aqui, há tempo sem uma visita dos seus. E julgo que não há nada que nos faça perceber melhor que é colocarmo-nos no lugar do outro".

Nos próximos dias já vai ser possível entrar no edifício e estar mais perto dos utentes. A direção decidiu mandar fazer uma estrutura em acrílico, que sirva de barreira. "Estarão dentro do mesmo espaço, da mesma sala, mas evitando a tendência do toque. Porque a probabilidade de corrermos para dar um abraço seria muito grande, mas perigoso".

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