Chega para lá!

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Decorria o dia 6 de janeiro de 2021, mais de um milhão de portugueses assistiam ao debate entre os candidatos presidenciais Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura. O líder do Chega exibe uma fotografia que ilustrava o Presidente Marcelo ao lado de sete jovens, todos da mesma família, na sequência de uma visita ao Bairro da Jamaica, que havia sido palco de polémicos desacatos entre a comunidade do bairro e a Polícia de Segurança Pública.

Numa tentativa de defesa das forças de segurança e do importante papel que desempenham no quadro do nosso Estado de direito democrático, André Ventura condenava a já habitual postura populista do Presidente - uma crítica que, a meu ver, não é despropositada, mas que que não deixa de servir, igualmente, como uma luva ao próprio Ventura.

Mas adiante, Ventura foi mais longe. Enquanto referia a fotografia, disse:

"Esta fotografia mostra tudo o que a minha direita não é. Nesta fotografia, o candidato Marcelo Rebelo de Sousa juntou-se com bandidos, um deles é um bandido verdadeiramente. (...) Porque esta fotografia que está aqui (...) não foi tirada depois na esquadra de polícia, foi tirada só, entre aspas e vão-me desculpar a linguagem, à bandidagem. E, portanto, talvez seja aqui uma diferença entre nós: eu não tenho medo de ser politicamente incorreto, de lhes chamar os nomes que têm de ser chamados e dizer o que tem de ser dito. (...) Eu nunca vou ser presidente dos traficantes de droga, nunca vou ser presidente dos pedófilos, nunca vou ser presidente dos que vivem à conta do Estado, com esquemas de sobrevivência paralelos, enquanto os portugueses de bem pagam os seus impostos, todos os dias a levantar-se de manhã à tarde para os pagar, e o que fez aqui não tem nenhuma justificação... (...) Muitos destes indivíduos vieram para Portugal para beneficiar única e exclusivamente daquilo que é o Estado social."

Na sequência destas afirmações proferidas em canal aberto e em pleno horário nobre, a minha colega, advogada, Leonor Caldeira ter-se-á oferecido para patrocinar a família visada.

O pedido que dirigiram ao tribunal, de natureza cível - sublinhe-se - , solicitava que se pugnasse pelo reconhecimento da ilicitude das alegadas ofensas e ordenasse a emissão de uma declaração de retratação pública, a ser publicada nos media e nas redes sociais onde as ofensas ocorreram.

Nada de processo-crime. Nada de pedidos de indemnização. Nada de vitimização. A meu ver, uma estratégia genial, digna de uma verdadeira "chapada de luva branca".
O tribunal assim o fez e fundamentadamente julgou a ação procedente. Ventura foi condenado, tão-só, a retratar-se e a pedir desculpa.

Na petição inicial foram feitas algumas referências à vida pessoal e profissional dos autores como, por exemplo, o facto de apenas uma das sete pessoas ter inscritos crimes no registo criminal, assim como o facto de apenas uma delas beneficiar do rendimento social de inserção - o que contraria, evidentemente, as afirmações públicas de Ventura sobre a maior parte das pessoas em questão.

Desfeita esta amálgama de alegados "bandidos" por um tribunal, André Ventura, disse:

"Se fico feliz por as minhas declarações terem ofendido alguém, não fico. Mas voltaria a fazer o mesmo."

Aqui chegados, poupar-me-ão a proferir considerações sobre o Chega, sobre as suas reprováveis propostas acerca da pena perpétua e da castração química, assim como as repugnantes afirmações misóginas que abomino.

Aliás, tenho o maior respeito pelos eleitores do Chega. Não penso que o partido deva ser ilegalizado, e receio que não seja dessa forma que conquistaremos os votos dos desacreditados no sistema. De contrário, creio plenamente que uma maioria significativa dos eleitores do Chega desconhece o programa do partido e mais: não se identifica com ele. Eu conheço alguns.

Então porque lhe confiaram o voto? O discurso de Ventura sobre os "portugueses de bem" é muito tentador.

Num país onde os cidadãos estão fustigados por impostos, onde as oportunidades escasseiam, onde a economia definha e onde os decisores políticos vivem numa bolha de autismo e não conseguem dar uma resposta real aos problemas das pessoas, é fácil votar no Chega. E é fácil porque presumem, à partida, que o partido nunca chegará ao poder - o que é, peculiarmente, hipócrita.

Voltando ao episódio da fotografia, não posso deixar de vergar-me perante a ideia de mostrar a Ventura, e a todos os Venturas, que Portugal é um Estado de direito, onde a lei é para cumprir. Onde erros se cometem e os políticos são chamados a repor a verdade. Sem pruridos.

Ainda que tenha sido uma generalização - o que não é menos grave -, não consigo deixar de colocar-me na posição de qualquer uma das pessoas daquela família que, vivendo de forma honesta, veem a sua imagem ser exposta desta forma asquerosa, só porque tiveram o azar de viver num bairro pobre e problemático. Só porque não tiveram as mesmas oportunidades de vida que eu tive.

André Ventura soube identificar um espaço político e capitalizar a sua narrativa através do Chega. Mérito lhe seja dado, tem afrontado sem tibiezas a esquerda e alguns poderes instalados em Portugal. É, por isso, um político sagaz!

Ao ser confrontado com a realidade, com factos dados como provados acerca das pessoas que ofendeu gratuitamente, nada mais era exigível que um sincero e humilde pedido de desculpas.

Particularmente neste episódio, Ventura revelou uma postura errática e arrogante com a qual não ganha nada, que só aparta o Chega da restante direita e o acantona a um nicho que, convenhamos, é tudo menos de pessoas de bem.

Deputada do PSD

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