Charlie Hebdo: há cinco anos o ataque anunciava um ano de terror em França
"Nada voltará a ser como dantes", predizia Anne Hidalgo, a presidente da Câmara de Paris, depois de dois homens armados terem entrado na redação do jornal satírico Charlie Hebdo e matado 12 pessoas. O ataque contra o semanário, conhecido pelo seu longo historial de cartoons críticos em relação ao islão e outras religiões, foi o primeiro de uma série de atentados perpetrados na quase totalidade por jovens terroristas nascidos em França que em 2015 fizeram mais de 250 mortos naquele país.
O ataque contra o Charlie Hebdo provocou ondas de choque por toda a França, revelando divisões num país que se orgulha do seu multiculturalismo e gerando um intenso debate sobre a integração da comunidade muçulmana e a liberdade de imprensa.
Os irmãos Cherif e Said Kouachi afirmaram ter agido para se vingar da publicação no jornal de cartoons do profeta Maomé, considerados ofensivos para os muçulmanos. "Vingámos o Profeta Maomé. Matámos o Charlie Hebdo!", gritaram de forma triunfante enquanto fugiam do local do ataque.
Em fuga, os irmãos Kouachi, ligados à Al-Qaeda, e o cúmplice, Amedy Coulibaly atacaram ainda um supermercado judaico, fazendo ao todo 17 mortos, incluindo três polícias, antes de serem abatidos.
Mas os irmãos Kouachi falharam na tentativa de "matar" o Charlie Hebdo. Apesar de ter perdido alguns dos seus cartoonistas mais talentosos, o jornal sobreviveu graças a uma onda de solidariedade.
"Eu queria que o jornal continuasse a existir. Para mim, não podia desaparecer assim por causa do que acontecera", explica Pierrick Juin, um cartoonista que se juntou ao Charlie Hebdo meses após o ataque.
Esta semana, o jornal publicou um número de aniversário desafiador, recordando o ataque e denunciando uma nova forma de censura do politicamente correto por parte daqueles que "acham que são os reis do mundo atrás dos seus teclados e telemóveis".
Mas os ataques revelaram divisões profundas em França: nem um minuto de silêncio respeitado por milhões de pessoas sob o slogan Je Suis Charlie (Eu sou Charlie) conseguiu dar a ideia de um país unido no luto.
Estudantes em duas centenas de escolas, sobretudo situadas em bairros com fortes comunidades imigrantes, boicotaram este tributo, acusando o Charlie Hebdo de desrespeitar os muçulmanos. E o então primeiro-ministro Manuel Valls causou polémica ao afirmar que a subido do extremismo em França se devia a um "apartheid geográfico, social e étnico".
O atual presidente Emmanuel Macron voltou a este tema na sua campanha para as eleições de 2017. Mas apesar da sua promessa de acabar com a "prisão domiciliária" a que estão votados muitos jovens dos subúrbios que se tornam alvos fáceis para os apelos do jihadismo, como os responsáveis pelos atentados de 2015, a verdade é que pouco mudou desde então.
Uma sondagem Odoxa, realizada em novembro mostra que a maioria dos habitantes dos bairros sociais continua a sentir-se abandonados pelo Estado e discriminados pelos patrões.
Os três dias de ataques em janeiro de 2015 culminaram com o assalto ao supermercado judaico, confirmando os receios de que os judeus franceses se tornaram um alvo para os islamitas radicais criados em França.
Ocorrido três anos depois de o jovem islamita Mohammed Merah ter matado um professor e três alunos numa escola judaica de Toulouse, o ataque de 2015 aumentou a sensação de que "somos alvos em qualquer lugar, em qualquer momento", afirmou à AFP o rabino Haim Korsia.
Para Korsia, esse momento marcou "uma espécie de perda da inocência" entre os 500 mil membros da comunidade judaica de França, a maior da Europa, que até então via na extrema-direita a sua maior ameaça.
A emigração de judeus franceses para Israel atingiu um pico em 2015, com muitos judeus originários do Norte de África a deixarem também os subúrbios onde até então tinham vivido ao lado de muçulmanos.
À medida que o ano avançava, os ataques foram aumentando de escala, com os jihadistas a matarem 130 pessoas em Paris em ataques indiscriminados.
E se as saídas para Israel baixaram desde então, os ataques antissemitas continuam, como a recente vandalização de uma centena de sepulturas num cemitério judaico na Alsácia.
Na sequência dos atentados de janeiro de 2015, o então presidente François Hollande enviou tropas para as ruas para guardar locais considerados vulneráveis e patrulhar sítios turísticos. Nos últimos cinco anos militares da operação anti-terrorista Sentinelle passaram a fazer parte da paisagem nas cidades francesas.
A presença militar foi reforçada após os atentados de novembro de 2015 e ainda hoje há cerca de dez mil militares nas ruas.
França continua no segundo nível de alerta mais elevado, com ataques esporádicos de indivíduos radicalizados a continuarem a fazer vítimas. No último ataque mortífero, um jovem de 22 anos convertido ao islão e com problemas psicológicos esfaqueou várias pessoas num parque perto de Paris tendo feito um morto e dois feridos.