Cerimónias, placas e Deus em fuga a lembrar Charlie
Um deus de longas barbas e longas vestes brancas manchadas de sangue. E o título: "Um ano depois, o assassino continua em fuga." É assim a capa do número especial do Charlie Hebdo que vai para as bancas amanhã para assinalar o primeiro aniversários dos ataques contra o jornal satírico e contra uma mercearia judaica em Paris. Mas esta não é a única forma de assinalar uns ataques que ao todo fizeram 17 mortos: para os próximos dias estão previstas cerimónias para os familiares das vítimas e no domingo o presidente François Hollande estará presente numa homenagem na Place de La Republique, um ano depois de esta se ter enchido de gente em defesa da liberdade de expressão e da democracia.
Ainda com a memória fresca dos atentados de 13 de novembro - agora indiscriminados e que fizeram 130 mortos também em Paris -, as autoridades francesas reforçaram a segurança na capital nesta semana. Depois de descerrar placas comemorativas nos vários locais dos ataques de janeiro de 2015, no dia 10, Hollande vai presidir a uma cerimónia mais pública, durante a qual será plantada uma árvore com dez metros, símbolo da resistência dos franceses. O cantor Johnny Hally-day, que aos 72 anos é uma lenda do rock francês, irá interpretar a canção Un Dimanche de Janvier (literalmente: Um Domingo de Janeiro), espécie de hino à mobilização popular que se seguiu aos ataques há um ano.
Charlie não morre
Conhecido pelos cartoons satíricos, que não hesitavam em criticar líderes mundiais ou em desafiar a religião, e sobretudo o islão, o Charlie Hebdo foi o primeiro alvo dos homens armados que entraram nas suas instalações em Paris a 7 de janeiro de 2015 e dispararam sobre os presentes na reunião de editores. Balanço: 12 mortos. Entre eles alguns dos cartoonistas mais conhecidos da imprensa francesa: Charb, Cabu, Wolinski, Tignous. Mas também dois seguranças encarregados de proteger alguns responsáveis do jornal, sob ameaça dos extremistas islâmicos desde que em 2006 tinham reproduzido os cartoons de Maomé publicados pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Os homens armados mataram ainda um agente da polícia em plena rua.
No dia seguinte, outro atirador, Amedy Coulibaly, abateu uma polícia antes de fazer reféns numa mercearia judaica. A 9 de janeiro, matou quatro dos sequestrados antes de se suicidar. Horas depois a polícia abatia os dois outros atiradores: os irmãos Chérif e Saïd Kouachi.
Agora, no editorial já disponibilizado da sua edição especial, o Charlie Hebdo garante que vai continuar apesar das ameaças dos extremistas que o querem amordaçar. "Eles não irão ver o Charlie morrer - o Charlie é que os vai ver morrer", escreve Riss, o desenhador e diretor do jornal, que ficou gravemente ferido no ataque de há um ano.
"Nessa manhã, depois do barulho ensurdecedor de seis dezenas de tiros disparados em três minutos na sala de redação, um imenso silêncio invadiu o local", conta ainda Riss no editorial. O sobrevivente lembra como "esperava ouvir lamentos, gemidos. Mas não. Nem um som. Esse silêncio fez-me compreender que eles estavam mortos". E deixa a questão: "Como fazer o jornal depois daquilo tudo? É tudo o que vivemos há 23 anos que nos deu a raiva necessária." Riss acrescentou ainda: "Não são dois parvalhões encapuzados que vão lixar o trabalho das nossas vidas."
O ataque ao Charlie Hebdo gerou uma imensa onda de solidariedade que ganhou forma através do movimento Je Suis Charlie, que se tornou viral nas redes sociais.
Em Paris, a mobilização refletiu-se na chamada marcha republicana, que reuniu dezenas de líderes mundiais e quase todos os políticos franceses (com a exceção muito falada de Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, de extrema-direita) na capital francesa. Mas por todas as cidades de França milhões de pessoas saíram às ruas em protesto contra o terrorismo.
Nesta semana, e após França ter estado de novo na mira dos terroristas, Hollande vai ainda dirigir-se às forças de segurança para traçar a estratégia para o futuro.