Cate Blanchett e o choque de Romain Gravas
A competição em Veneza está ao rubro. Surgem boas notícias do Lido da seleção principal. É oficial que Tár, fábula sobre uma maestrina ou maestro (esse é um dos tópicos que se propõe), tem a qualidade que se previa numa obra assinada por Todd Field, e também há que soltar foguetes no cinema francês: Romain Gravas faz um novo La Haine/O Ódio para esta geração com o potente Athena.
Começando com o título da major Universal, Tár, o que se pode desde logo pensar é em Óscares. O que Cate Blanchett faz neste regresso do realizador do belíssimo Pecados Íntimos (2006) é de uma magnitude insuperável. Um dos maiores desempenhos de uma atriz num filme americano em muitos anos, ela que já ganhou duas estatuetas e é sempre nomeada. Aqui a interpretar uma mulher de poder, uma maestrina que se torna uma lenda viva da música clássica e uma referência do poder feminino nestes dias. O filme é sobre isso mas também sobre género e o papel do poder feminino em tempos dos movimentos do novo feminismo. Tár, assim se chama ela: parecer ter tudo: fama, dinheiro, respeito, a direção da orquestra de Berlim e, mais importante, opinião. A dada altura, algo parece contaminar o seu poder: uma jovem de uma relação extraconjugal suicida-se e há também um vídeo viral onde parece que numa aula Tár exagera num discurso contra os novos caminhos do politicamente correto em termos de acertos de conta com o passado. Todos esses acontecimentos montam uma escalada de acusações onde se pressente que o seu papel de ícone é montado através de abuso de poder e de uma corrupção moral condenável. Do céu ao inferno, a heroína loura torna-se numa vilã sociopata, numa Joker que pode ser a pior pessoa do mundo. E nessa torrencial descida e queda há uma Cate Blanchett sem medo do histrionismo. Uma mulher sob uma influência de pesadelos negros, consumida por um medo que lhe come a alma, figura de um egocentrismo desta época.
Ao contrário do rigor de Vidas Privadas, o filme de estreia de Field, em Tár, parece funcionar sempre uma extravagância narrativa que surpreende, mesmo quando o tom é sempre austero, nomeadamente nas detalhadas conversas sobre a fixação da personagem: Leonard Bernstein, ou, ainda mais flagrante, nos momentos da orquestra - a música entra para dentro do espaço dramático.
Ensaio sobre as regras do novo desenho moral destes dias, das redes sociais às lógicas dos estandartes do peso do poder feminino, Tár é sobre a inversão dos poderes. E, se, afinal, uma mulher pudesse pecar e contaminar no poder como um homem?! Esta mulher da música é uma espécie de Harvey Weinstein, subverte a lógica. Ao mesmo tempo, Field está também a explorar a força irónica do cinismo numa intriga que tece juízos sobre a feminilidade tóxica. Só se lamenta que nesse processo haja um grau de controlo demasiado sufocante. Todd Field amestra tudo um pouco demais, ainda que seduza no seu fascínio pelos meandros do universo contemporâneo da música clássica.
Choque frontal também com o cinema que vem da mente de Romain Gravas, filho de Costa Gravas e "enfant terrible" que em cada filme faz manguitos agressivos a um certo cinema francês académico. Athena, assim se chama esta odisseia sobre um cerco a um bairro francês de periferia, é porventura o seu melhor filme, aperfeiçoando o que já prometia em O Dia Chegará, a obra de estreia. Tudo se passa quando jovens dos subúrbios se aliam e atacam uma esquadra, roubando material de fogo. Em causa estão os protestos face à morte de uma criança do bairro supostamente às mãos de oficiais da polícia. Três irmãos de origem magrebina acabam por se confrontar nesse violento cerco: um polícia, um dealer e um instigador. Pelo meio, um jovem polícia recém pai é feito refém. A França fica em risco de uma guerra civil violenta e explosiva.
Cinema antifascista puro e duro, Athena é um "tour-de-force" sobre a violência civil numa sociedade de descontentamento constante. De alguma forma, Gravas, com a ajuda no argumento de Ladj Ly (o realizador de Os Miseráveis) está a propor uma distopia ultra violenta de uma ideia de fim da França. Trata-se do tal novo ódio, aquele que Matthieu Kassovitz há quase trinta anos, em O Ódio, já explorava. Uma explosão que além de ódio é um ato de revolta perante um estado de coisas e cujos alvos vão dos movimentos de extrema-direita à segregação do governo, não faltando a brutalidade policial. É claro que pode ser acusado de câmara-pavão: muita grua, planos-sequência constantes e steady-camera em overdose, mas na verdade são os utensílios para uma nova, novíssima atitude de propor o contacto físico em cinema. Com Athena vamos para os confrontos de forma literal, sentimos o fogo em cima dos nosso olhos, acreditamos nesta barbárie. Esta é a nova ordem do cinema choque francês. Em breve para testemunhar na Netflix.
Mas porque em Veneza tudo é contraste, sai-se da sala e num encontro com Timothée Chalamet, em breve para ler neste jornal, ficamos a saber que um dos atores mais adorados do cinema de Hollywood é fanático de David Bowie e acha que Bones and All, antes de ser um filme "gore" sobre canibais, é uma história de amor. Tem toda a razão do mundo. Esta obra de Luca Guadagnino continua a ser o melhor filme até agora da competição e a histeria das jovens no tapete vermelho foi prova que Chalamet é uma estrela de cinema como há muito o cinema americano não criava...
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