O jovem Martinho, militar ao serviço do império romano, converteu-se ao cristianismo e foi um dos primeiros santos da Igreja, senão o primeiro, a chegar ao colégio divino sem passar pelo martírio. Nascido na Panónia, província da que veio a ser a Hungria, terra de grandes vinhos e prodígios, morreu em 9 de novembro de 397. Foi sepultado dois dias depois e fixou-se por isso o dia 11 de novembro como Dia de São Martinho. Contactou e conviveu com dois grandes vultos espirituais e morais da história da Igreja, Santo Agostinho e Santo Hilário de Poitiers, de quem se tornou discípulo após renunciar à vida militar. Viveu por isso no tempo em que de certa forma se falava diretamente com Deus, na busca mundial de valores que se seguiu à morte de Jesus Cristo e de S. João, o último apóstolo a morrer. É o mesmo S. Martinho a que os franceses prestam culto - Saint-Martin des Champs - e os ingleses veneram - Saint Martin in-the-Fields. A extrema popularidade de que já gozava cresceu ainda mais depois da sua morte, e tem milhares de templos católicos e anglicanos que lhe são dedicados. O dia 11 de novembro marcava talvez por isso mesmo o início formal do inverno e o termo de toda a atividade nas vinhas e adegas. Temos o adágio "no Dia de São Martinho vai à adega e prova o vinho", sinal claro da pausa que era dada aos vinhedos e aos lavradores que neles laboravam. Retomava-se no ano seguinte com a poda, marcando o início da nova campanha, mais particularmente no dia 22 de janeiro, Dia de São Vicente, já agora padroeiro principal de Lisboa e patrono dos vinhateiros. Tudo ligado, afinal, ao vinho e à vinha e Portugal não podia ser exceção..É no dia 15 de novembro - findo o São Martinho - que todos os anos termina o prazo de entrega da declaração de produção no Instituto da Vinha e do Vinho (IVV), na qual cada produtor declara formalmente o que a sua casa produziu. Por esta altura também, já os ouriços caíram dos castanheiros, rasgados pela força da semente que lhes cresceu dentro. Aquilo a que nós chamamos castanha é a semente do castanheiro português - Castanea sativa - e é estruturante da história da alimentação, utilizava-se abundantemente na cozinha ao longo de todo o ano. Há que perceber que batata, milho e tantos outros hortícolas vieram originalmente da América do Sul, e só no século XVII foram introduzidos nos costumes e bases do Velho Continente. A castanha pilada - pelada e seca - regenerava-se em água antes de se cozinhar e era o grande acompanhamento à mesa, tão importante ou mais do que o grão-de-bico. Nos festejos de São Martinho, que marcavam o fim definitivo da campanha vinícola, havia por isso castanhas e ainda um subproduto decorrente da lavagem dos fusos, cubas, lagares e prensas que se fazia fermentar e que dá pelo nome familiar de água-pé. Trata-se afinal de levar a aguadilha de lavar as massas a fermentar, obtendo-se uma graduação alcoólica de cerca de dez graus, graças ao açúcar residual existente. Chamava-se outrora molhadura ao litro de água-pé que se entregava por dia a cada trabalhador e que era ligeiramente gasoso. Era do gosto de todos e ainda hoje vai bem com castanhas. Não é permitido engarrafar água-pé como tal, mas nas regiões que têm a designação de vinho leve - entre oito e dez graus de álcool - entre as categorias admitidas pode fazer-se. Há que não confundir com outras três categorias: abafado, em que os mostos são fortificados com aguardente vínica na proporção de um para quatro; tratado, em que há uma ligeira fermentação que é parada por adição de aguardente vínica; e jeropiga, que resulta da mistura de mosto com aguardente bagaceira. Tudo depende do gosto de cada um, certo é que todas vão bem com castanhas assadas ou cozidas, e com petiscos diversos que incluem castanhas e derivam do receituário popular; aquele sobre o qual ninguém reclama autoria ao mesmo tempo foi inventado por todos..Tudo aponta para que a castanha tenha nascido no enclave formado pela Ásia Menor, Balcãs e Cáucaso, o rastreamento é hoje muito difícil, já que mexe com a história da civilização ocidental desde há mais de cem mil anos. Juntamente com o pistácio, foi muito importante para a mantença do homem na pré-história, de resto como aconteceu também na alimentação dos animais, o que já dá uma boa ideia da sua importância. Era por isso normal que fizesse já parte da dieta base das civilizações clássicas. Os gregos e os romanos, por exemplo, conservavam as castanhas em ânforas cheias de mel silvestre, com a dupla intenção de conservar o alimento propriamente dito o alimento e além disso impregná-lo com o seu sabor agridoce..Os romanos incluíam a castanha nos seus banquetes, em confeções variadas e ao longo da Idade Média, nos mosteiros e abadias, monges e freiras utilizavam frequentemente as castanhas nas suas receitas doces e salgadas. Há que atentar em que a castanha era neste tempo consumida moída, o que conduziu a que a sua farinha se tornasse numa das bases culinárias mais populares de toda a Europa. O período do Renascimento pôs entretanto a gastronomia ao rubro, em matéria de requinte, com fórmulas e confeções. Data deste tempo o marron glacé - castanha glaceada em calda de açúcar -, criação francesa que rapidamente invadiu todo o mundo, incluindo naturalmente Portugal. Uma vez mais, visando apenas a conservação, atingiu a reputação de iguaria dos deuses. Ainda hoje é delícia perante a qual guloso algum se faz rogado. A castanha que comemos, embora seja uma semente como por exemplo a noz, tem muito menos gordura e muito mais amido, o que lhe dá mais vantagens em termos de possibilidades de alimentação. Para se ter uma ideia da sua potência, as castanhas têm cerca do dobro do amido das batatas. Além disso, são ricas em vitaminas C e B6 e uma excelente fonte de potássio..Em Portugal, dá-se as boas-vindas às castanhas nos magustos de São Martinho, nos termos que conhecemos e praticamos. Em Espanha, faz parte da tradição a matança de um porco e na Alemanha acende-se fogueiras e organiza-se procissões. A árvore em si, contudo, tem um lugar único no imaginário popular e é legado familiar que passa de geração em geração. Assistir ao leilão da produção de castanheiros nos adros das igrejas do norte é inesquecível, além de que é uma forma de fazer face às necessárias obras de conservação, contribuindo também para fins de solidariedade local. Existem dois vocábulos para designar os povoamentos de castanheiros. Aos povoamentos de castanheiros vocacionados para a produção de castanhas dá-se o nome de "souto manso", enquanto o povoamento vocacionado para produzir madeira é o "castinçal"..Em certas zonas, devido a doenças e causas afins, o castanheiro tem vindo a desaparecer. A presença do castanheiro está bem patente na toponímia de Portugal, onde aparecem frequentemente designações como Souto, Castanheiro ou Castanhal. Árvore poderosa, chega ter a altura de dez andares de um prédio, sem perder o vigor. Não é em vão que o povo diz que um castanheiro leva 300 anos a crescer, 300 a viver e 300 a morrer. Mil anos de boa e cálida companhia.