Não há nenhuma câmara de vigilância da autarquia da Amadora no local onde Cláudia Simões foi detida por um agente da PSP na noite de 19 de janeiro, na paragem dita do Bairro do Bosque, na Rua Elias Garcia, nem junto à esquadra de São Brás (60.ª esquadra), para onde terá sido levada pela PSP e à porta da qual, acusa, foi mandada para o chão pelos agentes e pontapeada na testa. Essa é a informação que o DN obteve diretamente da autarquia, que facultou ao jornal acesso ao mapa da localização das câmaras na zona..De facto, de acordo com esse mapa, existem duas câmaras na Rua Elias Garcia, que é muito longa e atravessa toda a cidade da Amadora: uma está junto à boca de metro da Falagueira, outra perto do parque Delfim Guimarães. Ora, o Parque Delfim Guimarães está por sua vez perto do Centro Comercial Babilónia, onde Cláudia Simões terá entrado na carreira 163 da Vimeca, tendo saído na quarta paragem, a do Bairro do Bosque, da qual o metro da Falagueira dista centenas de metros..Assim, não haveria a possibilidade de esta ocorrência - a detenção de Cláudia Simões e o que a antecedeu - ter sido registada por câmaras municipais, nem tão-pouco o que sucedeu à porta da esquadra, onde uma ambulância dos Bombeiros Voluntários da Amadora a encontrou já com o rosto desfigurado (lesões que Cláudia Simões atribuiu a agressões de que teria sido alvo no carro-patrulha que a transportou, assim como ao pontapé que já fora do veículo lhe teria sido desferido pelo agente que a deteve, Carlos Canha)..É provável que a 21 de janeiro, quando requereu ao tribunal a junção das imagens de videovigilância ao processo, a representação legal da arguida não fizesse ideia da localização das câmaras da autarquia e não soubesse se a Vimeca tem ou não videovigilância nos autocarros (a empresa nunca esclareceu publicamente nem essa nem qualquer outra questão relativa à ocorrência). Mas na última sexta-feira foi noticiado, pela TVI24, que Cláudia Simões terá tido conhecimento de um despacho do tribunal no sentido de a informar de que não terá acesso às ditas imagens.."Desapareceram" ou nunca existiram?.A notícia não detalha o que exatamente diz o despacho, mas o título é "Desapareceram as imagens de videovigilância da Amadora", o que implica a interpretação de que as imagens requeridas existiram..É também citada a lei 1/2005, que "regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum", e na qual se prevê que "as gravações obtidas de acordo com a presente lei são conservadas, em registo codificado, pelo prazo máximo de 30 dias contados desde a respetiva captação, sem prejuízo do disposto no artigo anterior"..A mesma lei estatui que "quando uma gravação, realizada de acordo com a presente lei, registe a prática de factos de relevância criminal, a força ou serviço de segurança que utilize o sistema elabora auto de notícia, que remete para o Ministério Público juntamente com a fita ou suporte original de imagens e de sons, no mais curto espaço de tempo possível ou, no máximo, até 72 horas após o conhecimento da prática dos factos; caso não seja possível a remessa do auto de notícia no prazo previsto no número anterior, a participação dos factos é feita verbal e eletronicamente, remetendo-se o auto no mais curto prazo possível"..Assim, parece pacífico concluir que a PSP, que gere o sistema de videovigilância do município da Amadora, deveria ter, num prazo de 72 horas, remetido para o MP todas as imagens que pudessem ter relevo para os processos-crime em causa - o relativo à participação apresentada pela própria PSP contra Cláudia Simões, como o relativo à participação desta contra a PSP. Porém, de acordo com a TVI24, a 18 de fevereiro, na véspera de se cumprirem os 30 dias sobre a data dos factos, ainda não tinha havido resposta ao requerimento de Cláudia Simões, pelo que a sua advogada terá feito outro requerimento, com carácter de urgência. O qual terá então tido resposta quase um mês depois, a 28 de fevereiro, informando-a, como já vimos, de que não existem (ou já não existem) as imagens que requereu..O DN conseguiu confirmar que, tal como a TVI24 afirma, não foram remetidas quaisquer imagens de videovigilância para o processo, nem relativas ao autocarro nem ao espaço público.."Todas as imagens de videovigilância daquela noite deveriam ter sido entregues".Com base na informação veiculada pela TVI24, o Bloco de Esquerda entregou nesta terça-feira no Parlamento uma pergunta ao ministro da Administração Interna, na qual se lê que "as imagens de videovigilância constituíam um meio de prova essencial. Tanto as imagens do que ocorreu dentro do autocarro como as imagens daquilo que aconteceu na via pública são essenciais para provar os factos"..Admitindo desconhecer "se a defesa de Cláudia Simões requereu o acesso às imagens do autocarro ou da via pública ou ambas", o BE considera a "situação gravíssima" (refere-se à não junção das imagens ao processo), perguntando se o governo tem conhecimento dela e se sabe "se foram apagadas todas as imagens, do autocarro e da via pública", assim como "que diligências tomará o governo para recuperar as imagens apagadas"..O requerimento do grupo parlamentar do BE, assinado pelas deputadas Beatriz Gomes Dias e Sandra Cunha, questiona ainda: "Que garantias tem o governo de que a lei 9/2012 [alteração à lei 1/2005] é cumprida e que medidas concretas são aplicadas para a fiscalização do seu cumprimento? Dará o governo, se necessário, conhecimento ao MP destes factos para que seja aberta investigação? Já deu o governo conhecimento à Inspeção-Geral da Administração Interna de que não foi cumprida a lei n.º 9/2012, na parte em que refere que, em factos com relevância criminal, devem as imagens ser enviadas para o MP quanto antes?".Ao DN, a deputada Beatriz Gomes Dias explica o objetivo do questionamento: "Queríamos perceber se aquilo que está na notícia da TVI24 é verdadeiro. Se havia ou não imagens e se essas imagens, existindo, foram ou não apagadas. Há uma situação que está bastante ambígua, e pensamos que deve haver uma atuação exemplar. Queremos saber se as instituições estão, como devem, a colaborar neste caso.".Confrontada com a informação obtida pelo DN junto da autarquia, de que não há câmaras nos dois locais principais da ocorrência, a parlamentar frisa ainda assim que "a Amadora tem muitas câmaras de videovigilância e mesmo que não haja imagens do local da detenção e da porta da esquadra poderá haver imagens do percurso do carro-patrulha"..Esta, lembra, é uma das questões mais importantes neste processo, uma vez que a Cláudia Simões afirma que foi já no carro-patrulha que ocorreram as agressões que resultaram no estado em que deu entrada no hospital (com o rosto todo inchado): "O visionamento das imagens daquela noite poderia permitir obter essa informação - a de qual foi o caminho que o carro-patrulha levou do local da detenção até à esquadra, e quanto tempo levou.".Pelo que, conclui Beatriz Gomes Dias, "todas as imagens de videovigilância da Amadora naquela noite deveriam ter sido entregues ao MP"..Versões contraditórias do princípio ao fim.O DN procurou contactar, sem sucesso, a representação legal de Cláudia Simões. Também a PSP não respondeu ao pedido de esclarecimento do jornal sobre a localização de câmaras de videovigilância - a possibilidade de a esquadra de São Brás ter uma câmara de videovigilância própria não foi despistada; no Google Earth, é possível confirmar que na Rua 17 de março, onde aquela se encontra, existe uma tabuleta que assinala a existência de videovigilância..Existem imagens vídeo, filmadas por circunstantes, e que mostram o momento em que Cláudia Simões está no chão, a ser manietada pelo agente da PSP Carlos Canha. Foi devido à partilha dessas imagens nas redes sociais que o caso foi objeto de notícia..Cláudia Simões conta que apanhou o autocarro 163 na noite de 19 de janeiro, domingo, junto ao Centro Comercial Babilónia, acompanhada de um sobrinho e pela filha mais nova, Vitória, de 8 anos, a qual se teria esquecido do passe. O motorista do autocarro terá dito que a criança não podia viajar sem passe, mas Cláudia recusou sair, dizendo que ia pedir a outro filho para ir ter à paragem com o título de transporte da miúda..Quando chegou à sua paragem, o motorista chamou um polícia que por ali estava e este acabou por, segundo a narrativa da PSP, dar ordem de detenção a Cláudia por esta ter recusado identificar-se e por ter agredido o polícia. Diz o comunicado da PSP: "O Polícia, depois de se inteirar da versão dos acontecimentos prestada pelo motorista, dirigiu-se à cidadã por este indicada. A cidadã, de imediato e sem que nada o fizesse prever, mostrou-se agressiva perante a iniciativa do Polícia em tentar dialogar, tendo por diversas vezes empurrado o Polícia com violência, motivo pelo qual lhe foi dada voz de detenção. A partir desse momento, alguns outros cidadãos que se encontravam no interior do transporte público tentaram impedir a ação policial, nomeadamente pontapeando e empurrando o Polícia. O Polícia, que se encontrava sozinho, para fazer cessar as agressões da cidadã detida procedeu à algemagem da mesma, utilizando a força estritamente necessária para o efeito face à sua resistência. Salienta-se que a mesma, para se tentar libertar, mordeu repetidamente o Polícia, ficando este com a mão e o braço direitos com marcas das mordidelas que sofreu e das quais recebeu tratamento hospitalar.".A versão de Cláudia, vertida num comunicado enviado às redações a 22 de janeiro, é muito diferente: "O Sr. Motorista resolveu chamar pelo Polícia que avistou ainda do interior do autocarro; o Sr. Agente Canha vinha a sair da Taberna da Porcalhota junto à paragem. Sem que eu saiba o que o Sr. Motorista terá dito ao Sr. Agente, este, assim que se aproximou de mim, abordou-me agressivamente, tanto que a familiar com que eu me encontrava a falar ao telemóvel perguntou-me logo o que se estava a passar, já não tive tempo de responder porque o Sr. Agente deu um safanão no telemóvel, arremessando-o ao chão; ordenou-me então que me sentasse no passeio, pedi-lhe para me sentar antes no banco da paragem; respondeu-me que não, que era no chão; recusei-me a sentar-me no chão em plena via pública e, perante a minha recusa, o Agente deitou-me ao chão, parece que com aplicação de uma manobra designada por mata-leão [trata-se de uma 'chave ao pescoço', uma manobra considerada muito perigosa, por poder esmagar a traqueia e partir o pescoço daqueles a quem é aplicada].".As imagens existentes - de filmagens com telemóveis - documentam, como já foi dito, o momento em que Canha "domina" Cláudia, sem que se veja alguém a tentar intervir em socorro da mulher. O rosto de Cláudia, tanto quanto é possível perceber, não está no estado em que entrará no hospital, após ser transportada no carro-patrulha para a esquadra e daí em ambulância dos bombeiros da Amadora para receber tratamento dos ferimentos..Uma das questões fundamentais do processo é pois a de saber o que aconteceu entre o local da detenção e o momento em que os bombeiros chegam à esquadra de São Brás para levar Cláudia Simões, e quanto tempo decorreu entretanto. Para determinar isso, imagens de videovigilância que tivessem captado a passagem do carro-patrulha seriam preciosas. Aparentemente, se existiram já terão sido destruídas..O caso está em investigação pelo MP e também pela Inspeção-Geral da Administração Interna. Apesar disso, na sua tomada de posse, o novo diretor nacional da PSP afirmou que o que viu nos vídeos "foi um polícia a cumprir as suas obrigações e as normas que estão em vigor na PSP", não tendo visto "qualquer infração". Mas ressalvou: "O que se passou depois, que não está documentado no vídeo, obviamente será devidamente esclarecido no âmbito do processo-crime e do processo disciplinar a decorrer na IGAI." Como se conclui, sem o auxílio de imagens de videovigilância.