Há, certamente, poucas lojas de portas abertas em Lisboa que viram o seu nome imortalizado em alguns clássicos da literatura portuguesa. A Casa Havaneza do Chiado é uma delas. É referenciada em Os Maias, onde, a páginas tantas se pode ler: "A uma esquina, vadios em farrapos fumavam, e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca, politicando." Mas Eça de Queiroz voltou ao local em O Crime do Padre Amaro ou n'A Correspondência de Fradique Mendes. Mas também Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e, no final do século passado, José Cardoso Pires, que referenciou a tabacaria em Lisboa, Livro de Bordo..A Casa Havaneza está no Largo do Chiado desde 1864, no mesmo ano que nasceu o Diário de Notícias, com o qual partilhou a inteligência da cidade nessa altura. Foi fundada por Henrique Burnay mas há documentos - anúncios da época - que indicam que talvez tenha sido ainda antes, em 1861, que a tabacaria foi criada pelos negociantes de tabaco François Caen e Charles Vanderin, belgas de Antuérpia..Sem quaisquer dúvidas é que "a Havaneza" era um poiso de intelectuais quer à sua porta a ver passar a vida da cidade ou no seu interior, onde se fumava e liam as notícias em primeira mão. Foi naquele local que existiu o primeiro telégrafo público da cidade, que recebia da agência Havas, fundada pelo francês Charles-Louis Havas em 1835, as notícias da Europa, uma das razões para a "romaria" da nata intelectual em busca de novidades em primeira mão. Mas não só. A zona do Chiado, que também já era poiso de intelectualidade e elegância, tinha na Casa Havaneza o principal ponto de encontro porque só depois de o século ter virado, a 19 de novembro 1905, é que nasceu o outro polo de artistas e pensantes: A Brasileira - num espaço anteriormente ocupado por uma camisaria..Mas dentro das paredes da tabacaria também se falava de dinheiro e se faziam negócios. Porque, além dos charutos cubanos e da venda de produtos de luxo de vários pontos da Europa, a Casa Havaneza emprestava dinheiro em troca de penhoras, uma espécie de função de banco que mais tarde a legislação obrigou a separar da atividade do tabaco. Aliás, Henrique Burnay, o fundador oficial da Casa Havaneza, era também conhecido como o "senhor milhão" pela importância que teve na vida económica do país na sua altura. Rafael Bordalo Pinheiro não perdeu a oportunidade e caricaturou-o pelo seu poderio financeiro e, num cartaz, desenhou-o como uma figura ainda maior do que o mapa de Portugal..E assim, anos mais tarde, a tabacaria que ocupava um espaço maior do que atual passou a dividir as suas paredes com o Banco Fonsecas & Burnay, tendo sido efetivamente dividido nos anos de 1940. E ainda hoje é uma agência bancária que reside no mesmo local..Mais tarde, nos anos de 1950, a loja foi alterada numa remodelação projetada pelos arquitetos António Azevedo Gomes e Francis Jules Léon. Nessa altura foi criada a gravura em mármore colocada logo à entrada da loja, da autoria de Bartolomeu Cid, e que é um dos ex-líbris do espaço. No interior foi ainda colocada uma grade de bronze dourada, da autoria do escultor Jorge Vieira, e a gravura em mármore. Já na década de 1970, o arquiteto Nuno Corte Real remodela a Casa Havaneza do Chiado..E ainda hoje, dentro da tabacaria, numa penumbra propositadamente intimista, onde os clientes se movimentavam a passos de quem sabe ao que vai, a Casa Havaneza consegue abstrair da movida do Chiado, que apesar da pandemia ainda persiste. Na Havaneza, como lhe chamavam os tais intelectuais do último quartel do século XIX, há no ar o cheiro muito ligeiro a charuto ainda por queimar - já não é permitido fumar na loja, sobretudo quando se abre a porta da pequena sala repleta de caixas e tubos de Habanos a uma temperatura controlada, um walk in humidor criado em 2009..Ao mesmo tempo, uma ária de ópera conhecida embalou a conversa que o Diário de Notícias teve com Pedro Ramos Rocha, diretor-geral da Empor, a empresa que gere as Casas Havanezas. A loja, classificada como monumento de interesse público, tem também filiais em centros comerciais, como o Amoreiras, inaugurada em 1985, e o Centro Colombo, em 1998, e no Porto, na zona do Pinheiro Manso, desde 2012. E há planos de abrir mais, diz o responsável..Inevitavelmente, a pandemia de covid-19 vem à conversa. "Tem sido difícil, temos tido quebra de faturação", confidencia Pedro Ramos. "Embora não tão drástica como outros setores, como o da restauração e hotelaria, que estão a sofrer muito mais que nós.".Na loja, onde se encontra uma grande variedade de tabacos, o destaque dado vai para charutos cubanos com marcas míticas com os Cohiba, Montecristo ou Romeo y Julieta. A Casa Havaneza, que hoje faz parte da empresa cubana Habanos, SA, tem a representação exclusiva de charutos de Cuba para Portugal..E para além do tabaco, há os respetivos acessórios que fazem parte da "cultura do charuto", caixas humidificadoras, pequenas guilhotinas ou cinzeiros. Mas também se cultiva outras formas de epicurismo: cachimbos, whiskies e outras bebidas nobres, além de acessórios de escanção..E quem é hoje o cliente da Casa Havaneza, sobretudo da loja do Chiado? O responsável explica que o perfil de clientes não tem mudado muito, mas que pela sua localização há, ou havia antes da pandemia, muitos turistas a entrar pela porta adentro. "Hoje há um mix de tudo, mas os clientes vão dos 30 aos 90 anos, pessoas que procuram um atendimento que a pressa dos dias atuais não permite noutros locais." A loja tem um peso histórico, sublinha Pedro Ramos Rocha. "Dizemos que é um lugar mítico para um produto mágico. Os clientes são fiéis a esta loja, ou porque trabalham ou vivem perto, ou mesmo porque é aqui que gostam de ser atendidos", explica..E não são só homens a entrar na Casa Havaneza. "Temos mulheres de várias faixas etárias e de sucesso profissional que vêm sozinhas fazer as suas compras e que querem aprender mais sobre charutos cubanos.".É a evolução da sociedade a entrar pela Casa Havaneza, que do pedestal do Chiado viu mudanças de regime, ditaduras, revoluções e conspirações e que quer continuar a ser um bastião da vida do centro de Lisboa. Tal como disse o jornalista e escritor Norberto de Araújo: "O Chiado resistirá. Enquanto existirem a Havaneza, a Brasileira e a Bertrand, temo-lo vivo."