SNS IX: Carta aberta ao Ministro da Saúde e ao Bastonário da Ordem dos Médicos

Publicado a
Atualizado a

Exmos Senhores
Dr. Manuel Pizarro, Ministro da Saúde do Governo de Portugal
Dr. Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos de Portugal

Caros Colegas

Tomo a liberdade de vos escrever, a ambos e em conjunto, já que ambos têm responsabilidade no cuidar da Saúde que vamos tendo em Portugal! Um por via do cargo ministerial, o outro por representar a classe médica de Portugal.

Ambos regulam, quer dizer, têm uma incumbência repartida, a incumbência de se entenderem para que o Serviço Nacional de Saúde siga em frente com a robustez necessária para que o país seja também robusto e saudável.

Como já por mais de uma vez aqui o disse, não podemos esquecer a génese do Serviço Nacional de Saúde: o SNS nasceu como uma manta de retalhos dos hospitais e centros de saúde existentes no País, todos na esfera dos serviços públicos. Foi necessário ser assim, porque de outra forma o Dr. Arnaut não teria conseguido lançar as bases da confusão em que se tornou o SNS.

Como soe dizer-se, o que nasce torto tarde ou nunca se endireita, mas também se diz que mais vale tarde do que nunca e que nunca é tarde para aprender.

Vossas Excelências são fruto de um Serviço que nasceu sem outra filosofia que não fosse a "Saúde tendencialmente gratuita para todos", tal como é referido na Constituição da República Portuguesa, no seu Artigo 64º, nomeadamente do seu número 2 - O direito à proteção da saúde é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito, e do seu número 3, onde se pode ler: Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado - a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, e b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde.

Diz mais umas coisas que para já não são para aqui chamadas, nem para o facto de serem V. Exªs, tal como eu, produto do SNS nascido como manta de retalhos. Juntaram-se uma enormidade de hospitais, desde centrais aos mais pequenos distritais, e de uma outra enormidade de centros de saúde herdeiros da antiga Protecção Materno-infantil, e chamaram-lhe Serviço Nacional de Saúde, tendencialmente gratuito.

Não foi de uma filosofia de Saúde, estruturada, pensada, estudada, que nasceu um Serviço Nacional. Foi de uma necessidade política para agradar a linha dominante à época (lembro que foram poucos anos após a revolução quando ainda fervilhavam os ideais post revolucionários).

E o que foi sendo feito depois, foram obras de adaptação do que existia antes ao que era necessário fazer existir depois. Um exemplo, e é por isso que digo sermos nós produto do SNS nascido manta de retalhos: para um jovem médico ser reconhecido especialista, tinha de fazer um internato num dos hospitais centrais do País, então quase só existentes em Lisboa, Coimbra e Porto. Era feito o internato quase a custo zero para o País (sim, nessa altura o ordenado de um interno era de miséria, tendo os jovens de complementar com uns serviços em algumas Caixas de Previdência, as famosas "consultas da caixa"), para depois poder concorrer a um exame da Ordem dos Médicos, com um júri de cinco examinadores, que conferiam, em caso de êxito, o título de Especialista em (...), pela Ordem dos Médicos.

Com a necessidade de "arranjar" internos para os hospitais da "manta de retalhos", o Estado abriu a possibilidade de outros hospitais terem formação de especialidade, tendo os internos no final do período de internato, de fazer um exame de saída da especialidade, que conferia o grau de Especialista em (...) pelo Hospital X. Para poderem ser reconhecidos pela Ordem teriam de fazer um outro exame, difícil, nos moldes já descritos, num hospital central - os melhores cirurgiões saiam dos Hospitais Civis de Lisboa, os melhores anátomo-patologistas saiam do Hospital de Santa Maria, etc., etc., etc. só para falar da zona de Lisboa, mas passava-se o mesmo nos principais hospitais do Porto e Coimbra. Alguns anos mais tarde, o Estado e a Ordem dos Médicos chegaram a um acordo, ainda vigente, no qual a Ordem reconhecia a titulação conferida por um exame único, mas em contrapartida a Ordem supervisionava (e ainda é assim) os conteúdos da formação dos médicos, bem como reconhecia a idoneidade, isto é, ajuizava a qualidade dos serviços que formam médicos em todas as áreas, incluindo as não hospitalares por esse País fora. A titulação de Especialista passou a ser única e passou a incluir a Medicina Geral e Familiar, feita em ambiente de Centros de Saúde.

Tanto eu, como V. Exªs, que são um pouco mais novos, somos Especialistas já fruto da titulação única, que foi até agora a única linha filosófica que existiu no SNS.

Quando falo em linha filosófica quero dizer que o SNS deve balizar-se em orientações que permitam que cada cidadão seja tratado da mesma forma em qualquer centro (hospitalar ou não) onde se dirija, diferenciando, obviamente as respectivas áreas de implantação, e é por isso que é necessário que haja uma pirâmide de necessidades a suprir, qual pirâmide de Maslow.

Ter um hospital e uns centros de saúde anexos tal como se propõe com as USL"s não vai trazer nada de novo à prestação de saúde às populações de sítios tão diferentes como o centro de Lisboa ou Porto ou da aldeia nos confins do Portugal profundo ou das Ilhas, que têm já as suas USL"s (com nomes diferentes), mas que não são mais do que um hospital com uma série de centros de saúde à volta, com um funcionamento em tudo semelhante ao existente no resto do País. O que o cidadão do Portugal profundo quer saber é se será tratado com a mesma eficiência que acha que terá se se deslocar a um centro de referência e expensas suas. É aqui que começa a definição do que será um SNS total e de igual qualidade para todos.

Com a definição de que tipo de relação existirá entre os médicos de Medicina Geral e Familiar com os seus pares hospitalares, já que os primeiros são os que têm por objectivo cuidar dos seus pacientes e orientá-los, em caso de necessidade, para outros centros mais diferenciados, que até pode não ser o hospital da sua USL ora implementada.

A filosofia do SNS tem de ter uma visão do País, das necessidades de cada região e das capacidades formativas indispensáveis para o fim em vista.

Aquilo que temos visto ser discutido nas últimas semanas, já foi dissecado quase até à exaustão por todos os vossos antecessores, não se julguem importantes por isso! Estamos todos exauridos com tanta discussão!
É importante, sem dúvida, saber quanto é que pode ganhar um médico em formação, já formado, em condições de chefia, etc., pois sem recursos humanos não há filosofia que valha, e servem muitas vezes de arma de arremesso político. Mas façam-nos um favor, caros colegas produto do SNS, discutam em paralelo a concepção para que haja um Serviço Nacional de Saúde verdadeiramente nacional e não uma coisinha para contentar os pobres, já que os remediados foram sendo "atirados" para as mãos de privados, que se valem do pouco que o estado paga aos seus médicos, e vão buscá-los a custo zero quando a formação que dá a tal Titulação única custou, quer queiramos, quer admitamos ou não, muito dinheiro aos nossos bolsos.

E se falo aqui dos médicos, porque sou um deles, poderia dizer o mesmo de todas as profissões que foram crescendo e se desenvolvendo só porque foi criado um Serviço Nacional de Saúde: Enfermeiros, Psicólogos, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Terapeutas da Fala, Administradores Hospitalares e tantas, tantas outras profissões que passaram a ser parte integrante do SNS e que serviram também para o desenvolvimento de uma miríade de cursos superiores entretanto criados porque eram necessários ao SNS, e que não teriam visto a luz do dia caso não houvesse um SNS, mesmo de tipo manta de retalhos

O SNS não serve só os cidadãos quando estão necessitados de cuidados primários ou diferenciados. Serve, através de todos os cursos superiores ou profissionais, através da investigação universitária que esses cursos se obrigam a ter para poder dar uma formação de qualidade aos seus alunos, futuros possíveis integrantes de um SNS de qualidade, serve, dizia, toda uma economia que gira em torno da prestação de serviços de saúde, serve, em última análise, uma fatia importante da economia nacional.

Tratem, caros colegas, da satisfação imediata de todos os profissionais integrantes (política oblige"), mas tratem também da satisfação mediata do Serviço que vos titulou enquanto Especialistas, e que por isso, porque houve acordo há umas décadas, são reconhecidos, tal como este vosso colega, pela Ordem dos Médicos.

Um muito obrigado pela eventual leitura, caros colegas,
O colega ao dispôr
Pedro Melvill de Araújo
Anatomia Patológica

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt