Carta aberta à minha casa

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Minha casa, permite-me o tratamento corrente. Em placa de mármore na rua, és: "Edifício Diário de Notícias - Prémio Valmor - 1940". Ao lado, o número de porta, 266, algarismos negros sobre mosaicos negros, como numa soberba: quem não sabe onde moro? A este, ao edifício, eu reconheço o mesmo que todos os lisboetas, nativos ou passeantes de um só dia, subindo a Avenida da Liberdade. Nele, beleza e poder. Bem vejo como se anuncia, em pregão mudo e sonante, na fachada rasgada por duas vezes: Diário de Notícias, letras góticas. Um D com cordas de harpa e um N sublinhando os extremos dos postes. Não o explicas, está lá para os entendidos: título em gótico, jornal de referência... Foste, és.

Do edifício, como todos, gosto. Farol encimado por um lanternim, cinco andares talhados em muitos ladrilhos negros, cada andar com vidros altos lapidados em cinco faces, o todo contrastando com o resto da fachada elegante e clara. O que o conjunto conta é o que somos, somos o que fazemos e ele é o desenho de uma antiga máquina de imprimir. Durante décadas uma rotativa rugiu todas as madrugadas, no ventre do Edifício Diário de Notícias. Sob a beleza, outra, trabalho. Ainda na frontaria, um pormenor, a pequena bola estilizada por fitas metálicas pousada sobre uma das duas portas. Sim, é um globo terrestre. Claro que sim, pois simboliza um jornal português, do povo que pôs o mundo assim. E esse é o último pormenor exterior, porque é à casa que quero falar.

Minha casa, admiro-te, fascinado. Minha casa, és mais do que este edifício nobre, és ele mas muito mais. Se és também Pardal Monteiro, o arquiteto deste prédio para onde se mudou o jornal em 1940, aí, já eras rio que ia. Vinhas de longe, no tempo - levavas mais de três quartos de século, 76 anos - e vinhas de perto, Bairro Alto, onde nasceste para pôr letras negras em folhas do papel. Começaste numa rua, a dos Calafates, que homenageava os operários navais que punham alcatrão (calafetar, dizia-se) nas tábuas dos barcos. Vês? Até no nascer já foste prolongamento, viagem.

Do teu berço deixaste marca - a dos Calafates agora é a Rua do Diário de Notícias. Mais três quartos de século dessa primeira mudança, novos 76 anos depois, voltas a partir. Recontando: 1864-1940-2016. Reparaste na repetição do intervalo, 76 e 76? Tem explicação simples, basta ter mundo e ser antigo para colecionares probabilidades de coincidências. Mas mais relevante são as marcas que deixas. Nem preciso de voltar ao edifício para o provar. Olha para a vizinha, a estátua do Marquês de Pombal, chegada ao topo da cidade meia dúzia de anos antes de ti. Mas graças sobretudo a ti. Dinamizaste a campanha nacional para agradecer àquele que construiu a Lisboa moderna. Tu, minha casa, nunca partes, vais deixando de ti pela cidade.

Pois eu, por estes dias, saí e entrei como quem volta e sai de casa e sabe que em breve parte de vez. Dói? Claro, mas é pessoal e tu, minha casa, meu DN, és muito passado e um mundo. Escrevi-o linhas acima, és rio. E não é escrito na água que o digo. Na primeira parede para a qual olha quem entra, Almada Negreiros pincelou quatro imagens: um cavaleiro traz a mensagem, uma vestal escreve de pena, um rapaz aperta a prensa e um cavaleiro de corneta e tambor parte a anunciar. Quem traz notícias do mundo, quem escreve, quem imprime, quem leva as notícias ao mundo. O teu negócio, minha casa. Repito-o sempre: negócio, negação do ócio. Trabalho. Que útil e tão necessário trabalho o teu, minha casa.

Dizia eu, tenho andado triste. Ontem, meu último dia no edifício, parei olhando o mural que acabei de descrever. Sussurrei as palavras que mestre Almada também pintou: "Quem não sabe arte, não na estima - Camões, Os Lusíadas, Canto V 97". Triste como um nunca mais. Foi então que tu, minha casa, falaste, com voz grossa de homem. Voltei-me e lá estavas, feito busto.

Sobre uma coluna - como teria de ser, chapas de zinco com letras de imprimir - tu eras o patrão Eduardo Coelho, em busto. O leitor, se já passou pelo miradouro de São Pedro de Alcântara, há de já tê-lo visto, o mesmo busto acompanhado de um ardina com pilha de jornais sob o braço. Na entrada da nossa casa, ele está sozinho, austero e, visto de baixo, o cavanhaque impressiona. Se eu tivesse conhecido Eduardo Coelho (1835-1889) haveria de lhe falar com o respeito merecido por quem manda bem. Ele reparou na minha tristeza e foi brusco: "Chora como uma mulher aquilo que não soubeste defender como um jornalista."

Entendi a alusão. Aixa Fátima, a mãe de Boabdil, o último rei mouro de Granada, falou assim para o filho, quando partiam para o exílio: "Chora como uma mulher aquilo que não soubeste defender como um homem!" Porém, Eduardo Coelho não se lamentava, interpelava-me com o seu exemplo. Marçano, operário gráfico, leu, viajou, viu o jornalismo moderno e trouxe-o para a pátria.

Fundou o Diário de Notícias e, sobretudo, fê-lo pensado. De todos os dias e de notícias, como dizia no título. E, se vendia palavras, alinhou-as com gosto e precisão. E se construía uma empresa, percorreu o caminho caminhando: uma folha inicial, aumentando seguindo a procura. E se o negócio era a palavra, construiu a liberdade de a ter própria: vender muito para ter anúncios. E para vender muito fez um preço pequeno para chegar a muitos. Durante mais de meio século, o Diário de Notícias foi vendido pela mesma moedinha, a mais barata de Portugal. Parece que nas grande escolas de economia a isso chama-se modelo de negócio.

Minha casa, o que estás a dizer-me é que não tens medo de mudanças. Sempre foste mudança. Deixas os murais de Almada Negreiros - olá, Lisboa, não tens nada que agradecer, é mais um gosto - mas levas um verso de Almada. Aquele que põe o bebé a dizer: "Mãe, vou viajar." É uma honra, minha casa, ir contigo.

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