Carnide. Uma aldeia urbana entre o passado e o futuro
Pela primeira vez em muitos setembros, o Largo da Luz, em Lisboa, está entregue ao canto dos pássaros. Onde, por esta época, estariam as rulotes de farturas, o pão com chouriço, as vendas de louças, plásticos e outras utilidades domésticas, a junta de freguesia mandou afixar outdoors com fotografias das feiras da Luz de outros anos, com a promessa de que em 2021 cá estaremos, como manda uma das mais antigas tradições deste sítio de Carnide, a que, noutros tempos, a fidalguia lisboeta acorria, atraída pela fama de bons ares. Ainda assim, a paróquia não deixará os crentes sem a procissão da Nossa Senhora da Luz, cuja imagem percorrerá parte da freguesia, na tarde do último domingo de setembro (dia 27), não deixando que a pandemia interrompa a longa história de uma das romarias mais procuradas do distrito de Lisboa.
Situada no limite norte da cidade, paredes-meias com o concelho de Odivelas, só tardiamente (em 1885, quando o concelho de Belém, a que pertencia, foi extinto) foi integrada no perímetro urbano de Lisboa e mantém um pouco da aura rural que lhe conheceram o conde de Vimioso e a Severa quando, no princípio do século XIX, vinham à Feira da Luz para fados e petiscos bem regados. "Aqui, a história está literalmente por todo o lado", diz-nos Ivo Antunes, do Carnide Clube, instituição que completará 100 anos de vida em novembro. "Tivemos algumas limitações no nosso funcionamento desde 2012, já que as obras de requalificação do Largo do Coreto trouxeram à luz do dia vários achados arqueológicos importantes. Aqui, precisamente onde nós estamos, havia um cemitério de leprosos com centenas de ossadas."
O bairrismo de quem cresceu neste pequeno centro histórico, com ruas de nomes tão sugestivos como da Mestra ou do Jogo da Bola, é inequívoco e está na prontidão com que sugerem locais de visita ou contam histórias. Cláudia Ribeiro, da papelaria Xitas, mostra-nos o merchandising com imagens históricas do bairro, com ruas sem automóveis, onde o olhar se foca imediatamente no elétrico 13, que unia o centro da cidade (Praça dos Restauradores) a este local. Assim foi desde 1929, com festa de arromba na inauguração, até julho de 1973, com várias alterações de percurso pelo meio. Solícita, Cláudia indica-nos o local onde um prédio foi alterado para permitir que o elétrico conseguisse dar a curva. Ainda hoje lhe chamam o "prédio recortado".
Dos tempos em que o 13 chiava nos carris restam ainda alguns estabelecimentos comerciais. É o caso da Pão de Carnide, loja instalada na Rua da Fonte desde 1923, com pão fresco (de farinhas e formas variadas), bolos, croissants e outras delícias a toda a hora. O sucesso evidencia-se nas filas à porta, que, garantem os funcionários, não desmobilizaram sequer durante as semanas do confinamento.
Outra referência histórica de Carnide é a alfaiataria Gualdino, mesmo junto ao coreto oitocentista na Rua Neves Costa. Com gosto, o proprietário, Fernando Costa, filho de Gualdino, fundador da loja na década de 1930, mostra algumas relíquias da sua arte, como as grandes tesouras de lâminas ricamente decoradas ou um ferro de engomar que não era a vapor, não era a carvão, mas, sim, a álcool. "Isto é menino para ter mais de 100 anos", diz. Fernando Costa, que aprendeu a profissão, primeiro com o pai e depois na escola de alfaiataria Magestil, testemunhou a queda da procura de roupa feita por medida, depois a própria transformação social do bairro em que cresceu e trabalhou toda a vida: "Tudo era muito diferente. Nesse tempo, tinha clientes que me mandavam fazer roupa de inverno e de verão, e eu próprio estava na loja, de fato e gravata, a rigor, para os receber. Hoje já tenho muito pouca atividade, ou nenhuma, os meus filhos não quiseram prosseguir no negócio e estou consciente de que se fechar a porta, rapidamente, se instala aqui mais um restaurante. Tendemos a tornar-nos um bairro na moda, mas em matéria de restauração, não de comércio local." Recorda a Carnide de há 20, 30 anos como "uma grande família, numa alegria formidável." O que ditou tal mudança? Fernando não hesita: "Os preços proibitivos da habitação que obrigaram muita gente a deixar as suas casas e a ir viver para os arredores. Os residentes de agora não são de cá, vieram de fora. Da minha criação já somos muito poucos."
Um pouco mais adiante, nesta mesma rua, que mais parece um largo, um treinador dá instruções a um grupo de atletas de basquetebol. São todas raparigas e dão continuidade a uma longa tradição de desporto feminino do quase centenário Carnide Clube. Campeão nacional sénior por sete vezes, tem hoje 17 técnicos da modalidade e cerca de 400 jovens praticantes entre os 4 e os 26 anos, metade dos quais do sexo feminino. Além do basquetebol, no clube também se pratica futsal feminino, taekwondo e karaté. Como frisa Ivo Antunes, "ainda estamos a recuperar dos anos em que não estivemos a funcionar em pleno devido às obras no largo, mas agora gostaríamos de assinalar o centenário como deve de ser. Não sabemos ainda se a pandemia deixa."
Aos olhos de todos, a mudança social e demográfica é já só uma certeza. Além desta espécie de aldeia urbana, a meio caminho entre um passado que deixa saudades e um futuro de perfil incerto, Carnide é uma freguesia com cerca de 22 mil habitantes (segundo os censos de 2011, anteriores à alteração administrativa das freguesias da cidade realizada em 2012), dos quais menos de 1300 residem o centro histórico, enquanto mais de 6000 residem, por exemplo, no Bairro Padre Cruz, o maior bairro social da Europa. Mas a mudança pode não significar despersonalização quer da traça urbana quer da vivência local.
Carnide - sabe-se - é local de fortes tradições culturais. Demonstram-no, por exemplo, as décadas de funcionamento do grupo de teatro, que ainda hoje dá continuidade a uma tradição de divulgação de grandes textos dramáticos muito estimulada pelo fundador do grupo Bento Martins (1932-1993) e de formação de atores. Mas já não estão sozinhos. Desde 2013 que o projeto Boutique da Cultura (www.boutiquedacultura.org) tem levado a cabo, nas palavras de uma das suas coordenadoras, Inês Pires, "um trabalho de democratização da cultura junto da comunidade". Formado por residentes em Carnide, incluindo um antigo presidente da junta, João Quaresma, começou por trabalhar com produções teatrais, mas rapidamente se estendeu a outras áreas, como a Livraria Solidária, em que é possível encontrar milhares de títulos em segunda mão, com preços entre 1 e 5 euros. "Tem sido um trabalho muito acarinhado pela população, não só na compra como na doação de obras", frisa Inês Pires.
Com o confinamento ditado pela pandemia, a possibilidade da aquisição online, com a disponibilização atualizada do catálogo a quem o solicitar, a procura aumentou consideravelmente, muito para lá dos limites da freguesia e até da cidade. Agora com instalações próprias na Avenida do Colégio Militar (a Casa das Artes de Carnide), a Boutique da Cultura tem ainda, desde 2017, uma incubadora de artes, com apoio a jovens artistas plásticos, e mais recentemente um auditório e um estúdio de gravação.
Já na próxima semana estreará a peça Silêncios e Tanta Gente, com texto de Sandra Benfica e encenação de João Borges de Oliveira, em colaboração com o Movimento Democrático das Mulheres, e as primeiras sessões já estão esgotadas. "Estamos muito entusiasmados com esta adesão, embora o tema, o tráfico de mulheres, não seja fácil nem confortável. Hesitámos um pouco, mas a adesão tem sido excecional."
Longe no tempo vão as observações deste mesmo sítio de Carnide, como a que o erudito Gabriel Pereira registou em 1910 no livro Pelos Subúrbios e Vizinhanças de Lisboa: "O sítio é agradável, de amorável paisagem, brilhante mesmo nos dias bons; como o terreno é variável na sua constituição, basaltos, calcários, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz onde o olhar repousa sem achar monotonia." Mas é bem possível que, desses locais que visitou em busca de sombra e água fresca, só Carnide se mantenha de algum modo fiel a tal descrição: senão bucólico, pelo menos pouco disposto a vender a identidade pela melhor oferta.