Carmelinda Maria dos Santos Pereira, que usa o nome abreviado Carmelinda Pereira, é hoje considerada uma relíquia viva -- e bué patusca -- dos tempos da Revolução, mulher em cujas rugas do rosto e pregas do espírito se guardam memórias de mil esperanças, e outras tantas de comícios, de manifestações, de sessões de esclarecimento, de infindas campanhas pelo país fora, sempre, mas sempre, ao lado do povo (e dos trabalhadores). Muitos saúdam, e bem, o seu exemplo de persistência cívica, patente nos incessantes combates que travou e vem travando, e, em especial, nas inúmeras vezes a que se tem candidatado a tudo quanto é sufrágio: presidenciais, duas vezes, em 1986 e 2006, com ambas as candidaturas rejeitadas por deficiências processuais e falta de assinaturas ("oficialmente não sou candidata, mas politicamente sou. Sou candidata a uma política socialista com todos os trabalhadores que querem mudar a situação do nosso país", afirmou na última ocasião em que se abalançou a Belém); europeias, três vezes, em 1994, 2009 e 2004, nunca passando do 13.º lugar; e legislativas, onze vezes, a última das quais em 2011, tendo ficado em 15.º lugar, com 4.572 votos..Tudo somado, foram dezasseis as ocasiões em que Carmelinda dos Santos Pereira se aventou a votos, demonstrando um tal e tão acrisolado amor pela democracia representativa que, pese não ter sido correspondido pelo eleitorado, bem merecia ser reconhecido pelas autoridades, fosse com um título de deputada honoris causa, fosse com uma medalhita da Liberdade, que a tantos tem sido dada. Tarda, de facto, a homenagem desta nação ingrata, desta terra sem História nem Memória, desta pátria pouco mátria, deste torrão sem coração. É tempo, é mais do que tempo, de honrarmos a saga de Carmelinda, dando-lhe os favores que o povo negou, mas que ela merece e muito, pois tantas vezes os quis..A biografia diz que nasceu em Assentiz, Torres Vedras, mas, sendo muitas as povoações da freguesia, ficamos nós intrigados em qual delas viu a luz: Beselga de Cima? Beselga de Baixo? A própria da Assentiz? Carvalhal do Pombo? Em Moreiras Grandes ou em Moreiras Pequenas? Outeiro Pequeno, Outeiro Grande? Talvez Vales de Baixo, ou quiçá Vales de Cima, quando não Serrada Nova, Pimenteiras, Fungalvaz, Charruada. Na falta desta informação, esclareça-se que, segundo vetustas crónicas, hoje vazadas na Wikipédia, Assentiz (ou Assentis) foi palco de uma grande carnificina de cristãos por banda das tropas romanas, naquilo que constituiu, passados tantos mil anos, o facto mais notável na história daquelas alagadiças terras, prenhes de malagueiros. Depois nasceu Carmelinda, aos 7 de Agosto de 1948, sendo oriunda, segundo a própria, de "uma família com fracos meios económicos, mas apesar de tudo com pão sempre na mesa e com os pés calçados, numa aldeia de pobreza imensa, onde as meninas que se sentavam na carteira ao meu lado tinham os pés roxos do frio da sua nudez" ("Mulheres de Abril: Testemunho de Carmelinda Pereira", Esquerda.Net, de 16/5/2017)..A mais velha de cinco irmãos, cedo se revoltou contra as injustiças do mundo e, um dia, ao ver a miséria das crianças da aldeia, perguntou à mãe: porquê? Até hoje, cremos, ainda não encontrou resposta. Podemos mesmo dizer, sem falsas ironias ou piadas parvas, que toda a sua vida foi motivada por aquela interrogação crudelíssima -- porquê? --, pois outra razão não encontramos, a não ser um incondicional amor aos outros e à justiça terrena, para ter despendido tanta energia, recursos e tempo em dezasseis campanhas eleitorais, todas perdidas..Nas suas memórias de infância, outro valor se destaca: a curiosidade intelectual e a importância da educação como "elevador social", segundo as suas palavras. Todas as semanas, ia buscar livros à Biblioteca de Torres Novas, terra para onde a família se mudou para que Carmelinda e os seus quatro irmãos pudessem seguir nos estudos. Tinha 13 anos. Mais tarde, concluiu o curso do Magistério do Ensino Primário para ganhar um salário e, com ele, ajudar os irmãos..Em Torres Novas, a família era vizinha de um casal endinheirado, o Sr. Patrício e a Dona Liberdade, com uma filha adoptiva que era colega de Carmelinda no colégio. Acontece que Patrício e Liberdade, além de pessoas dignas, eram anticlericais furiosos, coisa que calou fundo na pequena Carmelinda, que teve educação católica e, por isso, ficou muito surpresa ao ver que existia gente boa que não gostava da Igreja. Um dia, o Sr. Patrício levou-a, e à sua irmã mais nova, a Rosa, a verem duas velhotas paupérrimas, que moravam num casebre nos arredores de Torres, e a quem ele levou um cesto com alimentos e algum dinheiro. Terminada a boa acção, Patrício deu-lhes uma prédica política, dizendo que aquelas idosas mereciam viver numa habitação condigna e que deveria ser o Estado a proporcionar-lhes uma casa, mas, como o Estado nada fazia, teriam de ser as pessoas a prestar-lhes o devido auxílio. Mais acrescentou Patrício que isso não era caridade, mas solidariedade..O outro acontecimento que Carmelinda elegeu como decisivo na sua formação política passou-se na Nazaré, tendo por protagonistas a própria e um rapaz de nome Cláudio. Devido ao seu corpo atlético, Cláudio fora recrutado para os Comandos, depois fez treino em Lamego, e, antes de partir para África, encontrou-se com Carmelinda numa tarde morna de Agosto. Estamos a vê-los: ele a atirar pedras pela água dentro, fazendo-as saltitar sobre as ondas, ela a dizer-lhe para fugir à guerra na selva. Cláudio não a escutou, tinha medo: se desertasse, dizia, nunca mais iria ver a mãe e os amigos. Passados uns tempos, uma amiga comum ligou a Carmelinda, dizendo-lhe que Cláudio morrera na guerra e, como se não bastasse, uma semana depois chegou carta dele, vinda das áfricas, que dizia: "Não sei se conseguirei sobreviver. Estou muito mal, fui ferido em combate.".No episódio seguinte, Carmelinda leccionava num colégio, onde aplicava pedagogia de vanguarda, aprendida nas reuniões do Movimento da Escola Moderna. Incentivava os seus alunos da quarta classe a praticarem o "texto livre", escrevinhando num caderno o que lhes aprouvesse e só mostrando à professora o que também lhes aprouvesse. Sucede que o pai de uma das crianças abriu o caderno da filha e viu nele muita e muita redacção sem os erros ortográficos corrigidos e, pior ainda, textos sobre a guerra em Angola, terra onde a aluna estivera com os pais. Em resultado disso, Carmelinda acabou sendo visitada por uma brigada da PIDE, a qual não só a interrogou sobre que subversão era aquela como ficou vivamente desagradada por na aula estar patente uma exposição de desenhos dos miúdos sobre várias profissões, dizendo-se que, do lenhador ao doutor, todas eram importantes, sem distinções de classes e formações. Como estavam em Maio de 1973, prestes a findar o ano, com os exames à porta, Carmelinda escapou por um triz ao cárcere, mas uma colega sua não teve idêntica sorte, e acabou mesmo presa..No ano anterior, Carmelinda tivera já problemas no ISPA, o Instituto de Psicologia Aplicada, cujo curso frequentou como trabalhadora-estudante. Já então desalinhava, discordando quer da postura excessivamente conciliatória da gente do MDP-CDE, ligada ao PCP, para com a direcção da escola, fascista e reaccionária, quer do divisionismo inflamado dos militantes maoístas, gente do MRPP. Só com a morte de Ribeiro dos Santos, diz, foi alcançada a unidade desejada -- e necessária -- para combater o regime, coisa que acabou por levá-la, juntamente com mais 70 estudantes, a ser expulsa do ensino. Depois do 25 de Abril, voltaria a ingressar no ISPA, mas nunca chegou a completar a licenciatura, que preteriu em nome da luta política..Na Páscoa de 1974, uns amigos seus militares, do Quartel de Santarém, avisaram-na da iminência de um golpe, falando-lhe dos muitos levantamentos de rancho que então ocorriam entre os soldados daquela unidade. Numa madrugada de Abril, tocou o telefone em casa. Carmelinda vivia na altura na Cruz Quebrada, na companhia da irmã Rosa, e a sua casa era um coio de antifascistas, permanentemente vigiado pela polícia política. Ao atender o telefone, perguntou, estremunhada: "Quem é que foi preso desta vez?" Do outro lado da linha, disseram-lhe, tão-só: "Liga o rádio. Houve um golpe de Estado.".Não temos grande notícia sobre o que fez Carmelinda no dia 25 de Abril. O que sabemos, sim, é que logo a seguir aderiu ao PS, no qual começou por coordenar os núcleos de trabalhadores socialistas das empresas da região de Lisboa. Depois, foi a mais jovem das 20 mulheres eleitas para a Constituinte, onde se bateu, entre o mais, para que a elegibilidade fosse fixada nos 18 anos ("foi uma luta difícil no partido, mas o contributo da JS haveria de ser decisivo")..Em 1976, foi deputada na primeira legislatura da Assembleia da República, e aqui entornou o caldo. Na votação do primeiro Orçamento do governo de Soares, Carmelinda, Aires Rodrigues e mais uns quantos furaram a disciplina de voto imposta pelo líder do PS e tiveram a ousadia de votar contra. O plenário ficou boquiaberto. "A cara do Sá Carneiro, a voz do Carlos Brito que presidia aos trabalhos e suspendeu a sessão, a cambalhota que os dois partidos, PCP e PSD foram forçados a dar para viabilizar o OE, foi um escândalo", recorda ela..O gesto valeu a expulsão dos deputados rebeldes, que passaram a independentes. Em 1979, fundaram o Partido Operário de Unidade Socialista (POUS), de inspiração trotskista e lambertista, constituindo a secção portuguesa da IV Internacional, também conhecia por IV Internacional (1993), IV Internacional La Verité ou ainda Centro para a Reconstrução da Internacional - IV Internacional (CRI-QI). Ao contrário dos outros partidos, que se instalaram em edifícios pujantes no coração da cidade, o POUS optou por sedear-se na cave C do n.º 52-C da Rua de Santo António da Glória, o que, por si só, define uma atitude e um modo de estar na política. De facto, e como disse uma vez Carmelinda, "o número de votos não determina o partido" (ou, noutra ocasião, "nunca nos preocupámos com scores eleitorais"), como se depreende, de resto, das percentagens obtidas ao longo de décadas. A maior delas ocorreu em 1980, estrondosa, 1,38%, em coligação com o hoje esquecido Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), que teve vida curta, menos de um ano (criado em Junho de 1980, extinguiu-se em Maio de 1981), mas um programa ambicioso, já que se propunha, nem mais, nem menos, abolir o capitalismo e instaurar a ditadura do proletariado (de caminho, visava também unificar as facções "lambertista" e "morenista" do trotskismo, agregando ainda a Fracção Bolchevique, fundada no final dos anos 70 por Nahuel Moreno)..No meio destas movimentações todas, avultavam António Aires Rodrigues, antigo exilado político, operário da Renault em França e lutador do Maio de 68, e Carmelinda Pereira, a quem os alunos tratavam carinhosamente por "Professora Cami". No PS, suspeitou-se da dupla, dizendo alguns que Aires e Carmelinda eram praticantes do "entrismo", velha técnica de penetração dos partidos instalados por camarilhas de radicais (note-se: no II Congresso do PS, realizado no Porto em Outubro de 1976, a moção do grupo Aires/Carmelinda obteve 25% dos votos dos delegados)..O PS sofreu então uma cisão, com uma ala esquerda a defender uma maior aproximação ao PC e Mário Soares a dizer que não, jamais, e a preferir "meter o socialismo na gaveta", como afirmou na altura, e entender-se com o CDS, num casamento curto de sete meses, é certo, terminado com a exoneração de Soares por Eanes e o célebre dito "sinto-me livre como um passarinho". Um histórico socialista, Lopes Cardoso, que se demitira do cargo de ministro da Agricultura por discordar da política de destruição da reforma agrária, saiu do partido para fundar a Associação de Cultura Socialista - Fraternidade Operária e, mais tarde, a União da Esquerda para a Democracia Socialista, onde pontificaram nomes como César de Oliveira e o jovem António Vitorino..Entretanto, Carmelinda e Aires Rodrigues tinham fundado o Movimento para a Unidade Socialista - o que não deixa de ser curioso, pois nasceu no meio de um vendaval de cisões -, mais tarde POUS. Nas presidenciais de 1980, Aires foi candidato, ficando em último lugar, com 12.745 votos e 0,22% (para se ter uma ideia, o penúltimo candidato, Pires Veloso, arrecadou 45.132 votos). Carmelinda, de seu lado, tornava o POUS um one woman show, sendo o rosto de todas as candidaturas do partido, num arco temporal extensíssimo, de mais de três décadas, desde as legislativas de 1979 (0,21% dos votos) às europeias de 2014 (0,11%). Trata-se, muito provavelmente, de um recorde de longevidade e persistência único na história da nossa democracia, e tanto mais notável quanto, em trinta anos, o POUS não alterou o discurso nem transigiu nos princípios. Ontem como hoje, continua a defender que que os despedimentos devem ser terminantemente proibidos e que Portugal não só nunca deveria ter entrado na CEE e na UE como deve sair de lá quanto antes. Por isso, Carmelinda encabeçou a Comissão Nacional de Ruptura com a União Europeia, na senda do sonho de uma nova Europa, irmanada numa União Livre das Repúblicas Soberanas, de contornos promissores, mas vagos e indefinidos..Apesar de o POUS ter criado uma ala jovem em 2011, a Juventude Pela Revolução, sobre a qual pouco se sabe, Carmelinda e seus camaradas são gente da velha cepa, das lutas rijas do operariado, o tempo das fábricas e das indústrias ("a questão central que se coloca à Humanidade é a resolução do problema da direcção da classe operária", afirmou em 2017). Pouco lhes dizem os combates de agora e as querelas identitárias, como ficou exemplarmente mostrado quando lhe perguntaram sobre paridade e quotas de género, e ela respondeu assim: "Ainda hoje isso [a paridade] me dá vontade de rir. Porque isso para mim, e não quer dizer que não seja importante as mulheres terem papéis de chefia e serem reconhecidas com os mesmos direitos em toda a parte, mas sinceramente aquilo que para mim continua a ser extraordinariamente importante são os direitos das mães trabalhadoras, das mães que lutam para sobreviver". Não contente, acrescentou: "isto da paridade diz respeito, em grande medida, às mulheres que têm um nível de vida médio, às deputadas. Porque as que trabalham para sobreviver, 8 horas por dia, que saem de casa cedo, muitas vezes de madrugada, que chegam a casa tarde e que têm ainda de cuidar do jantar e dos filhos e fazer contas à vida, essas não têm paridade nenhuma": Diário de Notícias, de 5/1/2022..Numa entrevista de 2021, disse que a mãe, com 100 anos, foi toda a vida militante do PS, e que o pai, com 99, tinha muito orgulho do infatigável percurso político da sua filha mais velha. Diz ter saudades do filho e dos netos, que vivem na Noruega, e afirma, com garbo e orgulho, "não, não sou uma mulher desiludida com a política". O POUS é, para ela, quase uma questão de fé: garante que, apesar de ter decidido extinguir-se em 2020, convertendo-se em associação com o mesmo nome, o seu partido nunca irá desaparecer. O seu jornal, O Militante Socialista, que se assume como "Tribuna Livre da Luta de Classes", parece ter cessado a publicação em 2017, mas a página do POUS permanece actualizada e bem viva, dando conta de intervenções de Carmelinda em plenários de professores da FENPROF ou fazendo apelos a um cessar-fogo imediato entre a Ucrânia e a Rússia, já que a guerra, além de servir os interesses de Washington, tem sido usada "como instrumento último do capital financeiro, para tornar mais rápida a destruição de todas as conquistas sociais e o empobrecimento das populações"..Chama aos alunos "os meus pedaços de mundo" e, apesar de se declarar muito tímida, orgulha-se do seu percurso como professora, começado em 1968, como docente do ensino primário em Santarém, e terminado em Outubro de 2006, na Escola EB1 Amélia Vieira Luís, do Agrupamento Sophia de Mello Breyner, em Algés. De permeio, completou a sua formação na Escola Superior de Educação de Lisboa, em 1999-2001, onde obteve o Curso de Qualificação em Comunicação Educacional e Gestão de Informação - Bibliotecas Escolares, e, além das já citadas, esteve em várias escolas do 1.º ciclo, públicas e privadas com destaque para a SIMECQ (Cruz Quebrada), a EB1 do Bonabal (Torres Vedras), a EB1 do Casalinho da Ajuda (Lisboa) e a EB1 de Algés (actualmente Sofia de Carvalho). Nesta última, foi professora, directora de escola e coordenadora da biblioteca escolar, onde desenvolveu "práticas de organização democrática", em cooperação com a Associação Yehudi Menuhin, entre outras..De Carmelinda Pereira pode dizer-se que não enriqueceu nem se aproveitou da política, bem pelo contrário, e que nunca nela trilhou os caminhos da violência, da agressão, do insulto ao outro. Por isso, e muito mais, é literalmente uma mulher de um outro tempo, quiçá doutro planeta, e ainda bem para ela. "Nós somos feitos de sonhos, de memórias e de sonhos", afirmou há pouco, em retrospectiva de vida. Ao fim de várias décadas de combate político, e muitas campanhas eleitorais, tornou-se uma figura familiar dos lares portugueses, entrando-nos casa adentro sempre que havia um novo sufrágio, e tantos eles foram. Nos tempos de antena, é certo, Carmelinda lacerava-nos os ouvidos com aquela sua voz metálica com que debitava sempre, mas sempre, os mesmos chavões, as mesmas ideias, as mesmas e eternas utopias, hoje cansadas e gastas. Em todo o caso, há muito de admirável nesta figura, a um tempo poética e quixotesca -- ou, se quisermos, poética porque quixotesca, e vice-versa. O facto de deixar saudades é prova de onde chegámos..*Prova de vida (20) faz parte .de uma série de perfis.Historiador