Carlos lá e eu cá
Por que eu decidi muito cedo que não me interessava trocar de lugar com o meu ilustre colega de geração, o príncipe Carlos.
Em 1936, Rubem Braga, futuro grande escritor brasileiro, tinha 23 anos incompletos e mal começara a publicar suas crónicas em jornais. Mas logo numa das primeiras delas escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo facto de eu não pretender ser conde."
O título da crónica era "O conde e o passarinho", o que insinua a sábia e precoce opção do "sabiá da crónica", como um dia ele seria chamado. E por que um conde, e não um duque ou marquês? Porque uma das pessoas mais influentes do Brasil nos anos de 1930 era o conde Francisco Matarazzo - que, além de conde (embora de segunda classe, nomeado pelo Vaticano), era também um Matarazzo, industriais de posses incalculáveis. Era muita audácia do jovem Rubem não querer ser um Matarazzo.
Pois, mal comparando, muito cedo também decidi que eu não queria ser príncipe. Preferia continuar plebeu. Pude tomar essa decisão em tenra infância porque no mesmo ano que eu, 1948, só que alguns meses depois, nasceu o príncipe Carlos, filho da rainha Isabel II, da Inglaterra.
Carlos completou 72 anos em novembro último. Eu já tinha feito em fevereiro. Esses nove meses de diferença entre nós foram suficientes para que eu, um pouco mais velho, pudesse passar a vida a acompanhá-lo criticamente.
De certa forma, crescemos juntos, embora de pais e de países diferentes, e nunca nos vimos, nem sentimos falta disto. A distância, no entanto, não impediu que eu soubesse das suas peripécias porque, sendo Carlos filho de uma rainha - e logo de qual rainha! -, era natural que a imprensa lhe desse toda a cobertura. Da primeira à última chucha de Carlos, nada ficou sem registar. E, pelo que tenho observado durante esses 72 anos, acho que fiz a escolha certa. Mesmo porque eu tinha escolha - e ele, não.
Que história é essa de escolha? Você dirá que ninguém se torna príncipe por querer, donde eu não teria como me tornar um, mesmo que quisesse. Mas aí é que você se engana. O mundo está cheio de tronos a martelo, e qualquer brasileiro com algum espírito aventureiro pode se aproximar de uma herdeira encalhada, jogar um charme e tornar-se príncipe consorte ou coisa assim. E marido de princesa, príncipe será. Daí, não é uma tarefa impossível. A disposição necessária para concretizá-la, sim, é que deve desanimar até os mais ambiciosos. E, como nunca tive essa ambição, deixei as princesas encalhadas em paz e resolvi concentrar-me nas plebeias brasileiras, do que até hoje não me arrependi.
Mas, como eu ia dizendo, Carlos não teve essa escolha. Nasceu príncipe e supostamente destinado a ser rei assim que a rainha sua mãe desocupasse o trono. Na qualidade de alguém que um dia seria rei, teve uma educação de primeira, e esta é a única coisa que sempre invejei nele. Estudou em colégios muito melhores do que eu, deve ter-se formado em Oxbridge - Oxford e Cambridge - e provavelmente teve como seus tutores particulares os redatores da Encyclopaedia Britannica.
Mas nunca invejei as aulas de etiqueta a que também foi submetido, o que deve tê-lo obrigado a beber muita lavanda para não vexar um convidado que tivesse cometido essa gafe. Nunca invejei também sua obrigatoriedade de aprender a jogar polo, de pigarrear antes de sorrir e, menos ainda, de usar saiote aos quadrados nos feriados ingleses. O facto é que, enquanto Carlos sofria com tanta noblesse oblige, eu podia correr descalço pelas ruas, falhar aulas, beijar as primas na escada dos fundos, jogar futebol com os amigos, esfolar o joelho e cavoucar o nariz ou soltar pum sem dar satisfações a ninguém.
Nunca invejei Carlos sequer pelas garotas lindas com quem deve ter convivido em adolescente nos jardins do Palácio de Buckingham. Imagino os inúmeros beijos que lhe foram oferecidos por raparigas de tranças louras que mães ambiciosas tentaram empurrar para o futuro rei da Inglaterra. O garoto Carlos, se quisesse, poderia ter-se esbaldado com aqueles beijos e com outros pequenos prazeres nas traseiras da abadia. Mas, pelo visto, a etiqueta ou o que for proibiu-o de esbaldar-se de modo geral, e temo que Carlos tenha sido um rapaz inexperiente, carente e torturado. Se não fosse, porque trocaria a fresca e irresistível Diana, com quem se casou em obediência a um arranjo de famílias, por aquele simpático jaburu maternal, Camila Parker Bowles, que foi sempre a sua verdadeira paixão?
Se até há pouco podíamos apenas supor que Carlos levou e leva uma vida horrível, hoje, depois da série The Crown, da Netflix, não precisamos supor mais nada. Ela o mostra, desde cedo, sendo humilhado, massacrado e constantemente relegado a terceiro ou quarto plano pela sua mãe, pelo seu pai (o príncipe Filipe de Edimburgo) e por suas mulheres, Diana e Camila. Seus filhos, os príncipes Guilherme e Henrique, também não parecem tê-lo em alta conta. E, pelo que vemos nas fotos, é possível que até seus netos lhe apliquem sonoros pontapés à canela nas cerimónias da família.
Vejo Carlos envelhecendo e contemplo a mim próprio no espelho. Digno e de cabelos brancos, ele parece melhor hoje do que aos 50 anos, quando disse aquela frase histórica, de que gostaria de ser o absorvente íntimo de Camila. Hoje, Carlos dá a impressão de mais estável e tranquilo. Mas ainda aparenta mais do que os nossos 72 anos. É um homem triste. Já deve estar farto de ser príncipe, ainda mais porque o prometido trono nunca chegou - embora haja agora a promessa de que Isabel se retirará em 2021, aos 95 anos, e ele será não o rei, mas... príncipe regente.
Bem, quanto ao meu trono, este nunca chegará mesmo, e não me fará falta. A vida e o mundo não me devem nada. Também estou mais grisalho, talvez não tão digno. Com todos os problemas do Brasil, está tudo bem comigo aqui na selva e devo ser um dos mais felizes entre os homens comuns.
Donde, se Carlos quiser trocar de lugar comigo, aviso-o desde já - nem pensar!
Jornalista e escritor brasileiro.