Carlos Cortes: "A Ordem está a trabalhar na criação de um canal informático seguro para denúncias anónimas"

Está no cargo há um mês e dez dias e já teve de reagir a duas denúncias em hospitais, uma de assédio moral a profissionais e outra por negligência, mas também já criticou a tutela por falta de ambição e estratégia para o SNS. Nesta primeira entrevista, Carlos Cortes assume que a prioridade da Ordem é a garantia da qualidade dos cuidados prestados e que colocará todos os meios ao dispor para que este objetivo seja cumprido: "Doa a quem doer." Sobre as negociações com a tutela, diz não haver outra saída senão chegarem a bom porto.
Publicado a
Atualizado a

Carlos Cortes assumiu o cargo de bastonário dos médicos aos 53 anos. É conhecido por ser "uma pessoa com forte sentido de missão" e prometeu a quem o elegeu, na segunda volta das eleições, a 16 de março, e contra o candidato Rui Nunes, que iria ser "um bastonário de união para os médicos". Esta nova viagem começou há um mês e dez dias, mas antes, Carlos Cortes, nascido a 5 de janeiro de 1970, já era médico desde 1999, ano em que terminou o curso, em Coimbra, e pertencia aos quadros do Centro Hospitalar do Médio Tejo, que integra o Hospital de Tomar, como especialista em Patologia Clínica. Nos últimos seis anos, acumulou tudo isto com a função de presidente da Secção Regional do Centro. Nesta entrevista ao DN, admite haver "muita coisa a ser feita" na Ordem. Por exemplo, criar um gabinete de apoio aos médicos, o que já está a fazer, e visitar todos os hospitais em que não há "diálogo entre os conselhos de administração e os profissionais". Em relação à tutela, diz que esta esteve de "costas voltadas para a classe nos últimos anos", mas tal vai ter de acabar, para "bem do SNS".

Neste mês à frente da Ordem dos Médicos (OM) já teve de tomar posição sobre um caso de suspeita de negligência no Hospital de Faro, por parte de uma médica interna que denunciou o diretor de serviço e orientador de estágio. O hospital já a afastou e a Ordem nomeou uma Comissão Independente para investigar o caso. Foi difícil esta decisão?
Assim que tivemos conhecimento da situação decidimos logo que era importante ter uma intervenção imediata, obviamente técnica, porque é este o papel da Ordem, para percebermos se as alegações feitas correspondem aos factos. Se corresponderem, estamos perante um conjunto de acontecimentos que são graves e que merecem uma avaliação, nomeadamente dos conselhos disciplinares da Ordem dos Médicos, neste caso em concreto do Conselho Disciplinar da Secção Regional do Sul. O papel da Ordem é defender a qualidade dos cuidados de saúde nas suas várias dimensões, uma delas a segurança dos doentes, e se há instituição que em Portugal tem capacidade técnica para avaliar a qua- lidade dos cuidados de saúde e poder intervir é a Ordem - naturalmente, dentro do que é o seu domínio de intervenção, como a regulação da profissão, caso não estejam a ser executadas as boas-práticas da medicina (as chamadas leges artis). E não vou esquecer esse papel.

É uma prioridade?
É uma prioridade, porque o foco da Ordem, como já disse, é a qualidade dos cuidados de saúde e a segurança dos doentes. Portanto, posso dizer que a Ordem está focada nos problemas e nas denúncias que nos chegam. No caso de Faro, eu próprio pedi à Comissão Independente que foi criada, que tivesse celeridade no levantamento e avaliação dos vários processos para que o relatório, e se for caso disso, ser transmitido rapidamente ao Conselho Disciplinar do Sul, que também já está a analisar o caso. Porque, no fundo, é o órgão que tem competência para tomar e aplicar as decisões que podem ter de ser tomadas, não obstante a avaliação ter de ser remetida à administração do hospital, para poder intervir também, e ao Ministério da Saúde.

O hospital afastou de imediato a médica interna. Isto quer dizer que nem as instituições, nem os próprios médicos estão habituados ao escrutínio?
A questão do afastamento da médica envolve dificuldades que são óbvias em relação ao seu internato, porque a dr.ª Diana Pereira denuncia situações que têm a ver com o seu orientador de formação e isso, obviamente, quebra a confiança entre os dois e tem de haver a substituição do orientador. Estou a acompanhar pessoalmente o caso e tenho estado em contactado com a dr.ª Diana, não só para dar celeridade ao levantamento dos factos que devem ser remetidos à Comissão Independente, mas também para que a queixosa seja protegida naqueles que são os seus direitos, e os acusados também. Portanto, tudo o que tem surgido à volta da situação, e que não tenha a ver diretamente com o apurar dos factos, é floreado. Para a Ordem o mais importante é avaliar os factos e perceber o que verdadeiramente aconteceu para poder intervir e as autoridades também.

Destaquedestaque"O papel da Ordem dos Médicos, e aquele que eu quero que seja cumprido de forma absolutamente escrupulosa, é defender a qualidade dos cuidados de saúde em Portugal e colocarei todos os instrumentos que a Ordem tem ao seu dispor para cumprir eficazmente e de forma reconhecida esse papel, doa a quem doer e independentemente do responsável."

Mas os médicos e os hospitais não estão habituados ao escrutínio em Portugal?
O escrutínio é muito importante e a OM tem refletido muito sobre a questão. Esta direção está em funções há pouco mais de um mês, mas, mesmo assim, já estamos a trabalhar na definição de um modelo de procedimentos para quem queira fazer uma denúncia, seja médico ou não-médico, o possa fazer de forma correta. É importante que se saiba como fazer uma denúncia e a quem a dirigir, para que haja de imediato uma intervenção. Isto por um lado, por outro já estamos a trabalhar com os nossos informáticos para que seja criado um canal seguro e confidencial para que possam ser feitas queixas de forma anónima, que serão analisadas para depois, e se for caso disso, haver uma intervenção da Ordem. Agora, se há o hábito ou não de lidar com queixas também é uma questão secundária. O papel da Ordem dos Médicos, e aquele que eu quero que seja cumprido de forma absolutamente escrupulosa, é defender a qualidade dos cuidados de saúde em Portugal, e colocarei ao dispor todos os instrumentos que a Ordem tem para cumprir eficazmente e de forma reconhecida esse papel, doa a quem doer e independentemente do responsável. A Ordem tem uma obrigação para com o país e para com a sociedade: proteger a qualidade dos cuidados. E é isso que vai fazer e que a nova direção, neste curto espaço de tempo, já está a desenvolver.

Em março, 40 profissionais, enfermeiros e médicos, da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Viana de Castelo denunciaram assédio moral por parte do diretor de serviço. Os sindicatos dizem que tais situações são recorrentes. Tem esta noção? Por que é que os médicos não reagem, por medo?
Os médicos têm uma grande capacidade de adaptação às dificuldades. Sempre tiveram de se adaptar, por exemplo, às dificuldades em relação às condições de trabalho no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e acabam por se adaptar a situações em que as lideranças possam ter um comportamento menos adequado, muitas vezes por medo, outras porque se focam no que é o interesse dos seus doentes e acabam por desvalorizar até esse sofrimento pessoal. Tenho a perfeita noção disso. Outra das coisas que esta direção já está a organizar - e devo dizer que estamos a organizar muita coisa, que só será visível daqui a uns tempos - é um Gabinete Nacional de Apoio ao Médico. Por exemplo, para apoio em casos de violência, nos quais se enquadram os de assédio moral, muitas vezes pelas chefias de topo ou intermédias, tanto nos cuidados primários, como nos hospitais. É um problema que afeta sobretudo os médicos mais jovens, ainda em formação, e nós queremos colocar ordem nisto tudo muito rapidamente. É preciso avaliar o problema, conhecer a sua dimensão e o impacto sobre os médicos.

Destaquedestaque"Os médicos têm uma grande capacidade de adaptação às dificuldades. Sempre tiveram de se adaptar, por exemplo, às dificuldades em relação às condições de trabalho no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e acabam por se adaptar a situações em que as lideranças possam ter um comportamento menos adequado, muitas vezes por medo, outras porque se focam no que é o interesse dos seus doentes e acabam por desvalorizar até esse sofrimento pessoal."

Fala-se muito em burnout, o assédio moral pode ser um dos fatores?
Sabemos que um dos impactos é, precisamente, a exaustão e o burnout. Há varias situações que têm a ver com a pressão que, muitas vezes, as chefias, de forma indevida, colocam nos médicos. Por isso, um dos trabalhos a desenvolver nos próximos meses é o levantamento destas situações e o seu impacto, para podermos ter uma intervenção junto do Ministério da Saúde (MS) e de outros ministérios, que têm a tutela de médicos, como o da Justiça, e do poder político, para que haja um outro olhar sobre os médicos. O MS tem estado de costas voltadas para os médicos nesta última década e foi colocada uma pressão muito grande sobre os médicos. É tempo de aliviar essa pressão e de proteger e acarinhar os médicos, para eles próprios estarem em boas condições para tratarem os seus doentes.

O caso de Viana e de outros significa que não há boas lideranças no SNS? O que deve ser feito?
Um dos problemas do SNS é exatamente o das lideranças, de como estas são definidas e de como estas estão afastadas dos seus médicos e dos restantes profissionais de saúde. O problema de Viana do Castelo é complexo e difícil de perceber alguns contornos e já tenho agendada uma ida à unidade para falar com os médicos. Mas também irei deslocar-me a outros hospitais onde já foram imputadas dificuldades no diálogo entre conselhos de administração e chefias e os médicos. Não fui ao Hospital de Faro porque entendi que a situação era de tal maneira grave que a OM tinha de intervir imediatamente e não podia estar a criar ruído na fase de inquérito, que está a decorrer. Depois disto, irei.

Quer referir alguns hospitais?
Há vários onde existem estas dificuldades e é precisamente nestes onde têm sido relatadas também maior instabilidade e dificuldades na prestação dos cuidados aos doentes. Posso dizer que há vários hospitais na Região de Lisboa que serão objeto de uma visita mais atenta e de uma intervenção mais próxima e mais consequente da OM. A situação está a ser avaliada e muito rapidamente irei para o terreno. Sou um homem do terreno e gosto de estar nos locais para perceber o que está a acontecer. Durante a campanha, visitei todos os hospitais do país e percebi que nalguns havia médicos em sofrimento, desmotivados e insatisfeitos com as lideranças distantes, que não os ouvem e que estão fundamentalmente focadas nos resultados de produção. Mas, obviamente, que os resultados têm a ver com os médicos, que acabam por entrar em rutura, em burnout e por sair do SNS.

Há dias criticou o fim do SINAS (Sistema Nacional de Avaliação em Saúde) gerido pela Entidade Reguladora de Saúde. Se as unidades fossem bem avaliadas estas situações não deveriam ser detetadas e refletidas? Era um sistema que funcionava?
Nenhum modelo é perfeito e, obviamente, que o SINAS também não é. Mas é absolutamente lamentável que a ERS [Entidade Reguladora da Saúde] tenha terminado a avaliação das unidades pelo SINAS sem ter outro modelo em funcionamento. Com o SINAS, a avaliação era transversal a todos os hospitais, sendo mais fácil comparar unidades. E quando as pessoas são avaliadas, quando é atribuída uma pontuação, há uma tendência para que as unidades se desenvolvam. Fico satisfeito que haja outro modelo de avaliação melhor do que o SINAS, mas este só deveria terminar quando o outro estivesse a funcionar.

Destaquedestaque"Nenhum modelo é perfeito, mas é absolutamente lamentável que a ERS tenha terminado a avaliação das unidades pelo SINAS sem ter outro modelo em funcionamento."

A ERS não está a cumprir a sua função?
A ERS é uma entidade independente cuja função é avaliar as unidades de saúde. Se este [o Sistema de Avaliaçãi] não existe não está a cumprir essa função e obrigação, o que não deixa de ser estranho, porque o fim do SINAS acontece precisamente quando o próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, diz que o SNS está a atravessar a sua pior fase. Ou seja, na pior fase não temos uma avaliação que identifique os pontos fracos do SNS para os poder melhorar? O SINAS avalia todos os hospitais, não só os do SNS, e é lamentável que este sistema tenha terminado sem sequer a ERS ter notificado a Ordem, que participou na sua criação.

Neste mês também já criticou a tutela, dizendo que lhe falta ambição e estratégia para o SNS. O que faz falta então?
Há aqui uma questão de gestão de expectativas, que em relação ao ministro da Saúde e ao diretor executivo eram muito altas, porque são pessoas que conhecem muito bem o setor e as dificuldades no terreno e achámos que seriam capazes de fazer as reformas que o SNS precisa muito rapidamente. Infelizmente, isso não está a acontecer e começamos a vislumbrar reformas que nos preocupam.

Quais, por exemplo?
Desde logo, a aposta nas Unidades Locais de Saúde (ULS), porque estamos a difundir um modelo - e não tenho nenhum preconceito em relação às ULS - que não deu provas de ser o melhor noutros países. Ou seja, do ponto de vista técnico e científico, não há evidencia, a nível internacional e nacional, que nos faça crer que este é o melhor modelo. Aliás, os poucos estudos que existem demonstram haver questões de eficiência e de eficácia, nomeadamente na melhoria da qualidade das respostas, porque o objetivo deste modelo é haver uma Saúde Integrada, de maior ligação entre Cuidados Primários e hospitais, mas o que tenho visto - e visitei todas as ULS do país durante a campanha - é que, tirando uma a duas exceções, as restantes estão localizadas onde há maiores dificuldades na resposta ao acesso. Acho que isto merecia uma grande reflexão por parte do MS e do diretor do SNS.

O que é quer dizer concretamente?
É preciso perceber porque é que nas ULS os Cuidados Primários têm um papel completamente secundarizado, porque é que as ULS tem uma estrutura muito hospitalocêntrica; mais, uma estrutura sobretudo centrada nos Serviços de Urgência, quando o que se preconiza é um foco nos Cuidados Primários. Por exemplo, a Saúde Pública (SP) está a ser completamente esquecida no âmbito das ULS, não há uma definição clara sobre o seu papel. Os médicos de família, que têm um papel fundamental, também estão a ser secundarizados nas ULS. Os grandes investimentos que estão a ser feitos nas ULS não é nos Cuidados Primários, no Ambulatório ou nos Serviços de Internamento, é nos Serviços de Urgência. E este continua a ser o grande erro na construção do SNS.

No Dia Mundial da Saúde lembrou os idosos e que os cuidados têm de estar direcionados para estes, os cuidados não são iguais para todos os portugueses?
Os cuidados não são iguais para todos os portugueses, tendo em conta a sua idade e a sua localização geográfica. Há imensas assimetrias que têm de ser rapidamente corrigidas. É por demais evidente que no interior do país, onde há desertificação habitacional, há também uma desertificação em termos de saúde, o que tem impacto nas populações. Portanto, há aqui um olhar para a Saúde que não é equitativo, que não dá as respostas que deveriam ser dadas, nomeadamente aos idosos. Esta área é mais uma em que a OM quer desenvolver o debate e a discussão, porque os idosos de hoje não são os mesmos de há 30 anos ou de quando foi criado o SNS.

Por que diz isso?
Na altura, as pessoas que chegavam aos 60 e aos 70 anos eram saudáveis. Hoje, as pessoas vivem mais tempo, mas com mais problemas de Saúde e o SNS tem de se saber adaptar a estas novas necessidades. Até porque, Portugal é o país da UE com maior índice de envelhecimento - mais idosos em relação à população mais jovem. É preciso saber adaptar todas as estruturas ou ministérios, quer da Saúde ou da área social, às novas exigências e necessidades, que atravessam todos os setores de atividade, para se tornar o envelhecimento mais ativo e saudável.

Destaquedestaque"Não vejo outra saída para o ministério do que fazer chegar as negociações a bom porto."

Está a decorrer um processo negocial com os sindicatos médicos que dura há um ano, há muito que tal não acontecia. Os médicos atingiram o seu limite?
Isto está a acontecer porque, em primeiro lugar, na última década não houve diálogo da parte do MS com os médicos, nem com a Ordem nem com os sindicatos. Portanto, há aqui um acumular de situações que têm de ser corrigidas e definidas muito rapidamente. Por exemplo, a questão da remuneração e da valorização das carreiras e do papel dos médicos dentro do sistema de saúde. Este papel tem de ser reconhecido e a Ordem vai ser inflexível em medidas para que tal aconteça. Os médicos, e os profissionais de saúde no seu conjunto, têm tido um papel muito importante na construção do SNS e isto não pode continuar a ser esquecido. Por exemplo, um dos aspetos que tem sido muito desvalorizado nos últimos anos é a formação médica e Portugal tem de apostar nessa excelência, porque é importante para o desenvolvimento do país, da medicina e dos cuidados em saúde.

Acredita que esta negociação vai chegar a bom porto?
Espero que chegue a bom porto. Aliás, não vejo outra saída para o Ministério da Saúde do que fazer chegar as negociações com os médicos a bom porto, porque está em causa a sobrevivência do SNS.

Numa fase em que os médicos continuam a sair do SNS, que são conhecidos casos de assédio, que mensagem deve ser passada à classe?
​​​​​​​Apesar de tudo, a mensagem é para olharmos para o futuro com esperança, mas deixo também um apelo à responsabilidade de todos os médicos. O MS tem sido perfeitamente incapaz de apresentar as soluções que o país precisa para o SNS e para o Sistema de Saúde em geral e a Ordem vai assumir a responsabilidade de fazer um levantamento dos problemas do SNS, dos problemas do dia-a- dia das instituições de saúde, para depois apresentar um documento com medidas para a construção de um Sistema de Saúde adaptado às necessidades do país. Portanto, uma esperança com sentido de responsabilidade. É o momento de os médicos tomarem a palavra e de concretizarem o que é necessário para o SNS.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt