Quando Cristiano Ronaldo levanta a camisola e exibe a sua exuberante forma física (e toma conta dos comentários a nível mundial), poucos se lembram do miúdo franzino de 12 anos que chegou ao Sporting vindo da Madeira. CR7 é o expoente máximo da academia leonina e de tudo o que ela representa no futebol mundial. Foi em Alcochete que Ronaldo se deu a conhecer ao mundo a jogar à bola e foi lá que começou a ganhar cabedal, desafiado pelo amigo Semedo (Vit. Setúbal)..Um das pessoas que assistiram "ao nascimento de uma estrela" foi Carlos Bruno, atual coordenador do Laboratório de Otimização do Rendimento do Sporting. "Aos 12 anos são todos franzinos. Ele era realmente muito franzino, mas no caso do Ronaldo já se notava que o talento estava lá. Talento cognitivo e técnico que ele aprimorou com trabalho. Todos acreditávamos que ele fosse dar um grande jogador, mas ninguém podia imaginar que chegasse perto do que chegou. As nossas mentalidades não estão habituadas ou preparadas para ver um português no topo do mundo do futebol. Vivia-se na saudade do Eusébio e nunca ninguém pensou que pudesse haver alguém ainda maior. Depois dele tudo mudou. Quando ele saiu já todos olhavam para o Nani como sendo o novo Ronaldo...", confessou ao DN o preparador físico leonino..Carlos Bruno não esquece os tempos de CR7 na Academia, nem das recorrentes fugas do jogador para o ginásio: "Ele gostava do trabalho físico. Eram constantes as fugas dele para o ginásio para fazer exercício às escondidas... Ele queria tanto, que a gente queria é que ele tirasse o pé do acelerador. Eu tenho fotografias com ele e ele já estava na equipa A, mas não o deixavam trabalhar lá e ele ia para o ginásio da formação fazer o que bem entendia. Eu dizia-lhe: 'Ó Cristiano, não faças isso, hoje já chega, cuidado, que amanhã tens jogo.' Mas ele queria sempre mais. Ainda hoje quer sempre mais, por isso é que ele ainda está ao mais alto nível aos 33 anos.".Esta é apenas uma de muitas histórias. Ronaldo e o amigo Semedo, que o desafiou para o exercício físico, tinham um esquema. O segurança fazia a ronda às 23.00 e fechava as portas para ninguém sair, mas eles esperavam que ele fosse dar outras voltas da ronda para se escapulirem para o ginásio. Ficavam lá até à meia-noite ou uma da manhã. Resultado? E, por vezes, no dia a seguir não conseguia levantar-se para ir para a escola....Em 2003, CR7 transferiu-se para o Manchester United, mas não perdeu a humildade nem esqueceu os que o ajudaram a chegar lá. "Há uns seis meses fui fazer um estágio ao Real Madrid e cruzei-me com ele lá e fiquei muito sensibilizado com a forma como ele me tratou. Ele é uma superestrela, cheio de solicitações, e a forma como me recebeu e falou comigo, reconhecendo o meu modesto contributo para ele ser quem é hoje sensibilizou-me. Se eu já gostava dele... Passaram muitos anos, ficámos muito anos sem nos ver e eu já ficava contente se ele dissesse olá, mas fiquei admiradíssimo com o interesse dele em saber coisas do Sporting, da Academia, se algumas pessoas ainda lá trabalhavam", contou Carlos Bruno..O talento dos não atletas Jardel e Zidane.Carlos foi seduzido para a área da educação e preparação física quando era miúdo, com a ajuda do pai, de Zezinho... e do Diário de Notícias: "Quando era miúdo, tinhas uns 13,14 anos, esperava sempre que o meu pai chegasse a casa para ler a parte desportiva do Diário de Notícias. E uma vez li uma entrevista a um jogador do Sporting, o Zezinho, central, nos 1970-80. Perguntaram-lhe o que pensava fazer quando deixasse de jogar e ele respondeu 'talvez preparador físico'. E eu, sem saber o que raio era isso de preparação física, fui informar-me. E foi assim que me interessei por esta área. Agora veja a coincidência. Quando cheguei ao Sporting a primeira pessoa com quem trabalhei foi com o Zezinho.".Está no Sporting desde 1998. Trabalhou com Augusto Inácio e Laszlo Bölöni nos últimos títulos dos leões e lidou de perto com um dos melhores jogadores que já passaram por Alvalade e que é paradigma de um não atleta e jogador fantástico: Mário Jardel. "Um goleador fabuloso que prova o quanto o futebol é complexo e depende de tantos fatores. Ou seja, o Jardel era uma pessoa que contrariava pelo seu estilo de vida, tudo o que um futebolista de alto nível não deve fazer. No entanto, durante vários anos conseguiu ter um rendimento de altíssimo nível. A sua condição física era débil, o descanso era muitas vezes inexistente e os comportamentos de risco eram muitos. Mas a sua capacidade percetiva e decisional era extraordinária e assegurava-lhe o sucesso", explicou..Na opinião de Carlos Bruno, "há muito anos só o talento resolvia quase tudo", mas hoje as exigências são tão grandes que o jogador tem de ter talento e capacidade de trabalho: "Se tiver só um desses fatores só lá chega se for um fora de série. Há jogadores que não se destacam pelas capacidades físicas e no entanto são jogadores incríveis. O Zidane, por exemplo, tinha um consumo de oxigénio miserável para um jogador ao mais alto nível, mas era o melhor do mundo. Era tão forte noutros aspetos que compensava esse défice atlético, embora até o Zidane fosse melhor jogador se tivesse otimizado os défices que tinha."."A questão da bola é uma falsa questão".No início do milénio, com a construção da Academia em Alcochete, a direção leonina achou importante criar um centro que pensasse só nas capacidades físicas e que fosse tão importante como o desenvolvimento técnico e tático. Em 2002 foi criado o revolucionário Laboratório de Otimização do Rendimento do Sporting, aquando da inauguração do centro de estágios leonino: "Nós fomos pioneiros. Na altura o departamento era eu e agora somos oito pessoas (ver foto). Todos os elementos estão há várias épocas no clube e têm elevada formação científica. Pós-graduação, mestrados, cursos internacionais, etc... além de todos jogarem futebol federado."."No início tivemos de vencer muitas barreiras. Há muitos dogmas e muitos mitos relativamente ao trabalho físico e de força. Ainda hoje me aparecem jogadores a dizer que o treino de força trava o crescimento e faz perder velocidade, quando 60% do trabalho de um velocista é no ginásio. Lidei com alguns treinadores altamente resistentes a isso. Tive alguns confrontos ideológicos, e alguns que hoje têm uma abordagem completamente diferente e são defensores do treino físico admitem que mudaram radicalmente de opinião. O trabalho tático deve ser o fundamento do treino, mas depois há áreas, como o treino físico, que são complementares e que devem caminhar lado a lado se quisermos construir atletas ao mais alto nível e sem handicaps físico ou psicológico", defendeu o também preparador físico dos sub-23 leoninos..Mas o que é isso do trabalho físico? " O treino físico pressupõe uma ação motora, intensidade e esforço. Pode ser com bola ou sem bola. Obviamente se treinarem no ginásio a bola não dá muito jeito. Mas se trabalharmos no campo, os exercícios podem meter bola. Essa questão da bola é uma falsa questão. Pode fazer-se trabalhos com bola que são muito pobres do ponto de vista da evolução física do jogador", respondeu o preparador físico, lembrando que "é preciso ter em atenção que num jogo há uma bola para 22 jogadores durante 90 minutos". Portanto é preciso saber o que fazer sem bola em campo..O trabalho do Laboratório de Otimização do Rendimento "é desenvolver as capacidades físicas dos jogadores, seja desenvolvimento integrado seja dentro da equipa, com bola e baliza ou treino de força". Um trabalho que caminha paralelamente e é complementar ao que o treinador faz: "Pressupõe-se que o trabalho de força é para ganhar músculo e não é, eu posso ganhar força sem ganhar músculo. Ou seja, no fundo, vou otimizar o músculo que tenho. É como se tivesse uma lâmpada e ela funcionasse em função dos volts que lá chegam. Há exercícios que estimulam só o sistema nervoso central e não a parte muscular. Se eu tiver o meu sistema nervoso otimizado, o meu músculo vai estar mais enervado e vai contrair mais. A massa muscular é a mesma mas o músculo está mais otimizado.".João Mário não gostava do ginásio e depois contratou um personal trainer.A ideia de que o jogador quer é bola e não gosta de ginásio já não é bem assim. "Felizmente a maior parte deles sabem que não podem descurar o aspeto físico se quiserem chegar ao topo. Vou dar um exemplo real. O João Mário quando chegou à Academia o trabalho de força para ele era um sacrifício, não gostava. Quando foi para a equipa A, por opção do treinador, não fazia trabalho de ginásio. Depois até contratou um personal trainer para otimizar a parte física", contou Carlos Bruno, lembrando que a missão dos profissionais que trabalham no Sporting é dar aos jogadores "algumas ferramentas" para pensarem por si e não serem robôs..O preparador físico não tem dúvidas de que o treino físico deu responsabilidade e longevidade à carreira dos jogadores: "O jogador hoje é muito mais profissional do que era há 20 ou 30 anos. Claro que há sempre uns malandros dentro das equipas, mas hoje o jogador é muito profissional e vive para o futebol. Antigamente as equipas faziam estágios de dois ou três dias porque se não fizessem o jogador ia sair à noite ou para os copos. Hoje não é assim. A equipa principal do Sporting não faz estágio, quando joga em casa, e eu arriscaria dizer que 100% dos jogadores estão em casa e têm todos os cuidados, desde o descanso à alimentação. Os jogadores hoje são muito mais profissionais.".Claro que o treino de hoje também é diferente do de há 20 anos. E a tecnologia foi ganhando espaço ao serviço do Laboratório de Otimização do Rendimento. Hoje os jogadores treinam e jogam com GPS, por exemplo. Mas o que é isso de GPS? "Era bom que indicasse o caminho para a baliza [risos]... É aquele minicolete que os jogadores usam por baixo da camisola e que basicamente regista o deslocamento e a velocidade do jogador. No fundo, o GPS dá-nos um conjunto de dados que nos permitem ver a sua performance física. Com os dados de GPS consigo ver quantos quilómetros um jogador correu e se correu bem... Pode ter corrido 11 quilómetros e a exibição ser negativa", disse..Sim, porque correr muito pode não significar correr bem, e "o futebol vai muito para lá do desempenho físico": "No outro dia vi os resultados de um jogador sub-17 e ele questionou um colega sobre os valores, que eram baixos. E ele respondeu 'pois foram', mas marcou dois golos e foi o melhor em campo. O futebol não é atletismo, correr muito não é sinónimo de correr bem, é preciso saber para onde se corre. Por isso digo que a ciência ajuda o futebol, mas o futebol não é uma ciência."