Aos 45 anos, Carla Oliveira é das cientistas que mais sabem de cancro do estômago em Portugal e na Europa. Nasceu numa aldeia perto de Tondela, estudou em Coimbra, mas é investigadora principal no Ipatimup, no Porto. O estudo do cancro do estômago e as suas ligações à história familiar é uma paixão, desde que chegou à área da investigação..Aos 5 anos dizia que queria ser astronauta, aos 10 queria ser médica, mas aceitou a bioquímica como formação. No fim do curso, quis fazer estágio em análises clínicas, mas um dos seus professores não se conformou com esta sua ideia e encaminhou-a para a investigação. Foi assim que foi parar ao Porto. Fez doutoramento e hoje é a representante de Portugal na rede de referenciação europeia para as síndromes hereditárias raras ligadas ao cancro - GENTURIS..O cancro do estômago continua a ser dos mais mortais e com maior incidência em Portugal e na Europa também. A prevenção é um valor enorme, mas a verdadeira prevenção só é possível através da história familiar. Só através da história familiar é possível prevenir a doença antes de esta se desenvolver. Mas este lado preventivo ainda é muito negligenciado..Portugal é o país da Europa com maior incidência de cancro do estômago. Porquê? Em Portugal, há um número muito elevado de pessoas infetadas com a Helicobacter pylori. A faixa etária que está a desenvolver cancro atualmente viveu a infância num país economicamente comprometido, em que estas infeções ocorriam muito frequentemente. O sedentarismo, a alimentação desequilibrada e muitas vezes em grandes quantidades, rica em carnes vermelhas, em associação com o nosso contexto genético, pode também justificar a alta incidência..É uma realidade assustadora? O cancro do estômago aumentou muito durante um tempo. Neste momento, está estabilizado ou tem um crescimento mais lento. A incidência continua muito elevada em Portugal e em relação aos outros países europeus. Portugal é o país da Europa com maior incidência de cancro do estômago, seguido da Polónia. A nível mundial, são a China, o Japão e a Coreia do Sul que registam as incidências mais elevadas, com mais de 50 casos por cem mil habitantes. Portugal tem cerca de 36 casos por cem mil habitantes. Os EUA têm menos de dez casos por cem mil habitantes, assim como a maioria dos países do Norte da Europa..Porque é que só algumas pessoas desenvolvem cancro em idade jovem, enquanto a maioria desenvolve em idade avançada? Quando as pessoas desenvolvem cancro em idade jovem, antes dos 50 anos, torna-se importante perceber se há mais cancros na família. Se for o caso, suspeita-se de um cancro hereditário. O que acontece quando as pessoas herdam um gene normal do pai e um gene defeituoso da mãe (mas também pode ser o contrário). A presença do gene normal do pai é suficiente para manter o estômago dessa pessoa a funcionar bem durante um certo número de anos, mesmo na ausência de função do gene da mãe. Mas se o gene do pai ficar também inativo, especificamente nas células do estômago, a pessoa tem alta probabilidade de desenvolver cancro naquele órgão. No caso de a pessoa receber um gene normal do pai e um gene normal da mãe, é preciso muito mais tempo e muito mais agressões ambientais para que ambos os genes (do pai e da mãe) sejam inativados. Portanto, a probabilidade de desenvolver cancro é muito menor e ocorre muito mais tarde. Esta diferença nos nossos genomas justifica por que razão umas pessoas têm cancro em idade jovem (já nascem com um gene defeituoso) e outras quando são mais velhas (nascem com dois genes normais). Como as mutações causadoras de doença hereditária são raras, a maior parte das pessoas desenvolvem cancro de estômago esporádico geralmente depois dos 60 ou 65 anos. Tudo tem que ver com o tempo e com as agressões que são precisas acumular nas células para que estas se tornem cancerosas..As pessoas com tendência para cancro hereditário são facilmente identificadas? Infelizmente não. Mas é possível identificarmos mais pessoas destas e as suas famílias. Por exemplo, se uma pessoa vai ao médico de família e menciona que um parente próximo teve cancro em idade jovem, ou que mais do que um dos elementos da família tiveram cancro, isto deverá funcionar como um alerta. É o médico de família que está mais próximo dos doentes e, normalmente, é o primeiro a lidar com estas situações. E deverá referenciar estas famílias para um hospital especializado, onde possam ser seguidas numa consulta de risco para cancro familiar. A partir do momento que o doente é sinalizado, tanto ele como a sua família têm todas as condições para serem avaliados, seguidos e acompanhados nessa unidade se a suspeita de cancro hereditário se confirmar. A outra forma através da qual identificamos estas situações, e que até é a mais frequente, é quando uma pessoa em idade jovem entra pela urgência do hospital já com um tumor em estádio avançado. Nessa altura, a idade jovem é um alerta. E tenha ou não história familiar, deve ser encaminhada para uma consulta de risco de cancro familiar..Se é possível identificar as pessoas em risco, porque é que não há mais prevenção? Primeiro é preciso que os profissionais de saúde estejam atentos a estes casos. Se estiverem, quando um doente destes entra no hospital é encaminhado para uma consulta de genética e avaliado quanto ao risco de poder desenvolver cancro gástrico hereditário. Na consulta de genética, será recolhida toda a sua história familiar e, se for confirmado o risco familiar, deve ser colhida uma amostra de sangue para fazer o teste genético. Isto se o doente concordar. Se a suspeita se confirmar e for encontrada uma causa genética relevante, a análise genética pode ser alargada a outros familiares em risco. Os que apresentarem a mutação genética podem ser seguidos mais de perto e submetidos a medidas de redução de risco. Aqui, sim, é possível prevenir a doença. Mas como o cancro de estômago é muito agressivo e praticamente invisível nas endoscopias, muitos casos, como já referi, entram pela urgência e, por isso, é difícil ajudar todas as pessoas que possam ter esta mutação..É por isso que se diz que é uma doença silenciosa? É. Quando os doentes procuram o médico, estão geralmente em estádios muito avançados da doença, em que as células de cancro já saíram dos limites do estômago e já afetam outros órgãos. Nestes casos dificilmente é possível fazer alguma coisa para os salvar..Continua a ser um dos cancros mais fatais... É realmente uma doença muito agressiva. As últimas estimativas de 2018 dizem-nos que a nível mundial o cancro do estômago afeta 1, 3 milhões de pessoas e mata mais de 800 mil por ano. É o quinto cancro mais incidente na população mundial e o terceiro mais mortal. Em Portugal, todos os anos são registados entre três e quatro mil novos casos, sendo certo que 75% deles vêm a sucumbir à doença. É importante dizer que apenas 3% de todos os cancros gástricos são realmente hereditários..Ainda não se sabe porque é que o norte do país é a região com mais pessoas identificadas com cancro do estômago hereditário? Os estudos epidemiológicos revelam que a região norte tem de facto um maior número de cancro do estômago do que as regiões a sul. Não há explicações óbvias. Uma possibilidade é as pessoas do norte estarem mais frequentemente infetadas com estirpes de Helicobacter pylori mais agressivas. Pode ser uma explicação, mas para o sabermos com certeza teríamos de avaliar as estirpes de Helicobacter pylori que infetam toda a população portuguesa para perceber se as mais agressivas estão no norte ou não. Poderemos também mencionar as condições sanitárias em que viviam as pessoas no norte há 70 ou 80 anos, os hábitos alimentares, o tabaco e uma certa propensão genética desta população que ao longo dos tempos se fixou nesta região. As pessoas do norte talvez tenham saído menos, acabando por passar de geração em geração fatores de propensão para esta doença..Quantas famílias estão a ser acompanhadas pela sua equipa? O papel da minha equipa é fazer e interpretar o diagnóstico genético, que, sendo positivo, desencadeia o acompanhamento hospitalar das famílias. No Centro Hospitalar São João e no Ipatimup/i3S temos conhecimento de dez a 12 famílias. Acompanhamos no Hospital de São João nove delas. No IPO do Porto também há cinco ou seis. Depois há mais uma ou duas em Coimbra. A nível nacional há menos de 20 famílias identificadas com mutações no gene CDH1, que causa esta doença. As famílias que são identificadas com estas mutações são encaminhadas para centros de referência, como o Hospital São João e o IPO do Porto para serem seguidas em consultas de risco. Nas consultas de oncogenética, as pessoas ficam a saber se têm ou não a mutação que causa a doença, os riscos que correm, como devem ser vigiadas e que medidas profiláticas têm à sua disposição. A história familiar é mesmo muito importante, mas é uma questão que tem sido absolutamente negligenciada..O valor da prevenção é enorme. Porquê? Porque há mais de um milhão de casos de cancro gástrico a nível mundial. Destes, cerca de 3% são potencialmente hereditários. Isto significa que há cerca de 30 mil pessoas que carregam uma mutação que os predispõe para cancro de estômago ao longo da vida e que lhes pode causar a morte. O que é importante aqui é que estas 30 mil pessoas trazem consigo as suas famílias que também estão em risco. Se conseguirmos identificar essas 30 mil pessoas, também poderemos identificar os seus familiares em quem é possível prevenir o desenvolvimento da doença antes de esta se instalar..E dessa forma haveria menos custos para os sistemas de saúde... Em termos de custos em saúde, um doente que entre pela urgência com doença em estado muito avançado custa muito mais ao hospital e ao Estado do que um seu familiar que seja identificado com a mutação antes de desenvolver a doença e que seja devidamente acompanhado. Este é o poder da prevenção, a partir do momento que um indivíduo de uma família é identificado com uma mutação, todos os outros elementos poderão ser testados para saber quem tem e quem não tem o gene. Aqueles que se revelam negativos para a mutação custam cem vezes menos ao hospital do que os que entram doentes, custam apenas um teste genético e deixam de carregar o fardo de vir a desenvolver cancro como os seus familiares..E aos que é identificada a mutação no gene, o que acontece? Aos portadores da mutação, mas que permanecem assintomáticos, é-lhes aplicado de imediato um sistema regular de vigilância por endoscopia gástrica com múltiplas biópsias, mas é-lhes explicado que a única forma de prevenir efetivamente o cancro gástrico é por excisão do estômago antes de a doença aparecer. No caso das mulheres portadoras de mutação destas famílias, uma vez que, além do risco de cancro gástrico, também têm risco para cancro da mama, são submetidas adicionalmente a vigilância da mama por ressonância magnética. Apesar de esta vigilância ser eficiente, muitas portadoras optam por remoção cirúrgica das mamas. O que é importante é que, mais uma vez, o custo com a profilaxia e a prevenção é dez vezes menor do que o tratamento daqueles que entram pelas urgências..Portanto, a identificação de pessoas ou famílias com a mutação do gene é a única forma de prevenção? É a única forma de verdadeira prevenção da doença, porque conseguimos prever quem vai ou não vai desenvolvê-la. Beneficia o Serviço Nacional de Saúde [SNS] e a população. Mas para isso é preciso que a rede de cuidados de saúde e de referenciação também esteja bem implementada em Portugal e em toda a Europa, para que todos os casos sejam identificados e a mortalidade possa ser reduzida. É isso que a rede europeia que represento em Portugal, que se chama GENTURIS, pretende fazer. O trabalho desenvolvido já nos deu a perceção de que 50% das pessoas destas famílias não têm o gene que causa a doença. Portanto, estas podem ir à sua vida e ajudar os que não tiveram tanta sorte..Como é que as pessoas reagem quando o resultado é positivo? De diferentes maneiras. É muito dramático para uma família perder um filho aos 18 anos com um cancro do estômago, e saber que foi um dos pais que lhe passou a mutação hereditária. Normalmente, os doentes reagem e querem lutar, mas os pais a primeira coisa que sentem é a culpabilização. Não sabem porque acontece e alguns até recusam saber qual dos dois passou a doença. Há famílias que fogem, que recusam saber quem é portador da mutação. Mas na maioria as pessoas aceitam continuar a ser seguidas e o que mais querem é que não haja mais mortes na família. Olham para a sua perda como algo que podem usar para ajudar os outros. Alguns tornam-se elementos dinamizadores, tentam saber mais sobre a doença e levam outros elementos da família a ser estudados. São estas pessoas que normalmente assumem o papel de veículo de informação para os restantes familiares, porque os hospitais não podem propriamente procurar os elementos não doentes da famílias para uma consulta. Quando aceitam vir à consulta de genética, aceitam também ser estudados e acompanhados..Isto confirma que temos mesmo uma predisposição maior para o cancro do estômago... Parece que temos realmente uma predisposição maior para desenvolver este tipo de cancro, seja pela genética ou pela exposição a fatores ambientais como disse antes. Mas o que permitiu melhorar o diagnóstico foram os meios imagiológicos, e o que permitiu nivelar a incidência foram as técnicas cirúrgicas mais eficientes. É uma doença muito agressiva, mas há uma evolução na forma como está a ser encarada e tratada..Quais os sinais a que se deve estar atento? Os sinais mais frequentes são a perda de apetite e perda rápida de peso sem aparente justificação, fraqueza e cansaço, náuseas e vómitos. Volto a insistir na história familiar, que é um dos sinais. As pessoas negligenciam, mas deve ser sempre reportada ao médico de família. Normalmente, as mulheres são muito sensíveis a estas situações e quando perdem peso sem justificação procuram um médico, os homens não. E se repararmos bem, a incidência de cancro do estômago nos homens é o dobro da nas mulheres. Posso estar errada, mas estou convencida de que o facto de as mulheres estarem mais atentas ao seu estado de saúde e preocuparem-se mais com a prevenção das doenças é muito positivo para elas. Os homens quando se queixam e tomam a decisão de consultar um médico, por norma, já vão tarde. A questão é que a diferença entre detetar um cancro mais cedo, que ainda pode ser tratável, e detetar um cancro mais tarde, em que já pouco há a fazer, depende do tempo que medeia reconhecer os sinais e os sintomas e consultar um médico..Há uma receita para se prevenir? A receita é geral. Quem comer bem, fizer exercício físico, não é preciso ir ao ginásio, pode ser uma caminhada diária ao quarteirão, tiver hábitos regulados de sono, já fez metade do que é necessário para a prevenção. E se fizer exames de rotina que revelem isto mesmo, já é muito bom..Comissão Europeia quer mais centros de referência para o cancro em Portugal e na Europa.A sua equipa do Ipatimup/I3S investiga diretamente o cancro do estômago. Onde espera chegar? A minha maior ambição é conseguir encontrar a causa nas famílias que não têm diagnóstico hereditário. Estas vão ser constantemente negligenciadas e há pessoas que vão continuar a morrer porque não sabemos o que causa a doença e não as podemos identificar..Neste momento, é a representante de Portugal na rede de referência europeia para as síndromes hereditárias raras ligadas ao cancro - GENTURIS. Qual é o objetivo desta rede para toda a Europa? O Ipatimup, o I3S e o IPO do Porto constituíram uma entidade que é o Porto Comprehensive Cancer Center, que foi aprovado como centro de referência europeu da rede GENTURIS. A esta entidade está também associado o Centro Hospitalar São João. Este centro tem o selo europeu de qualidade na prestação de cuidados de saúde a doentes e famílias com síndromes hereditárias raras ligadas ao cancro. Eu sou a representante da rede GENTURIS em Portugal, e represento as equipas médicas e do diagnóstico nestas instituições, que são quem trata e segue os doentes todos os dias. A Tamara Milagre, da associação de doentes EVITA, também está envolvida e representa os doentes portugueses. O objetivo é conseguir-se implementar a nível europeu uma rede de cuidados de saúde para pessoas com síndromes raras ligadas ao cancro, nomeadamente ao do estômago. As redes europeias de referência (ERN) são redes virtuais que envolvem prestadores de cuidados de saúde de referência em toda a Europa a trabalhar em conjunto. Têm como objetivo principal promover esforços para que o conhecimento seja levado até ao doente com doença rara e não o doente a ter de sair do país para procurar esse conhecimento e os especialistas. Já temos alguns centros de referência para certas doenças e já conseguimos que os doentes sejam referenciados para o centro ou o hospital adequado de forma a receberem uma avaliação e tratamento multidisciplinar..Mas isso já se faz em Portugal? Está em fase de implementação. Como representante nacional nesta rede, o meu objetivo é pôr mais hospitais portugueses a funcionar em rede. Neste momento, só temos um centro como parceiro, que é o Porto Comprehensive Cancer Center, mas queremos mais. Tenho estado em contacto com outros hospitais nacionais para tentar identificar aqueles que têm instalada a capacidade de identificar e diagnosticar doentes com suscetibilidade genética e de os acompanhar e tratar com uma equipa multidisciplinar. Isto já é possível em hospitais como, por exemplo, o Centro Hospitalar São João no Porto, o IPO do Porto e o IPO de Lisboa para a área do cancro do estômago. Todos estes já têm consultas de risco que funcionam bem para cancro gástrico hereditário. Agora é identificar se há outras unidades que podem funcionar de forma equivalente, perceber quantos doentes é que tratam e organizar uma rede nacional de cuidados de saúde para estes doentes..O que vai permitir a existência de mais unidades hospitalares a funcionar em rede? Estamos a falar de doenças ou síndromes raras, e se são raras há poucos casos em cada país. Se, por exemplo, existem três doentes com uma dada doença, é óbvio que não são precisos três centros de referência para essa doença. Precisaremos apenas de um centro que possa levar o seu conhecimento a todos os doentes do país. O objetivo não é que um doente de Faro tenha de vir a Lisboa para ser tratado, é fazer que o conhecimento de uma equipa multidisciplinar possa viajar até onde o doente está. Permitiria fazer essas consultas à distância, com especialistas portugueses e europeus, e garantir que os médicos dos centros mais periféricos possam conhecer a forma correta de lidar com uma patologia ou saber para onde encaminhar um doente, se não tiverem as condições necessárias. Por isso, neste momento, estamos a identificar os hospitais que podem receber doentes com síndromes raras ligadas ao cancro, para garantir diagnósticos e tratamentos de qualidade aos portugueses, trabalhando em rede com parceiros nacionais e internacionais..A investigadora que queria ser astronauta.Investigadora, doutorada, professora universitária. Lembra-se de quando soube que queria ser investigadora? Nasci numa pequena aldeia da Beira Alta, em Tondela, Santa Ovaia de Cima, e quando tinha 5 anos queria ser astrónoma. Estava sempre a olhar para o céu e dizia a toda agente que queria estudar os planetas. Tive sempre uma tendência muito grande para as ciências, para as descobertas científicas e para a biologia. Lembro-me da primeira experiência que fiz quando tinha 5 anos. Os meus pais estavam a semear batatas e eu estava com eles no campo. E decidi pegar numa batata com grelo, numa sem grelo e num grelo. Semeie tudo lado a lado para ver se algum dava batatas. Não faço ideia de qual foi o resultado, porque não voltei lá a tempo de ver se havia batatas ou não, mas lembro-me perfeitamente de já ter naquela altura este pensamento para a investigação e de ter feito isto..Foi aí que deixou a ideia de ser astrónoma para ser investigadora? Não. Passei para a Medicina e mantive essa vontade até ao 12.º ano. Concorri a Medicina para todas as faculdades e pus Bioquímica em último lugar, como salvação para o caso de não entrar na primeira opção. E não entrei em Medicina, só em Bioquímica em Coimbra. E inscrevi-me com o objetivo de no final do primeiro ano pedir transferência para Medicina, só que gostei tanto do primeiro ano de Bioquímica que desisti da transferência. Nunca me consegui desvincular da ideia de trabalhar em saúde e quando terminei a licenciatura o meu objetivo era levar esse desejo para a frente. Na altura, não foi óbvio para mim que seria pela investigação. Tinha ainda a ideia de trabalhar com doentes, embora de forma indireta. E concorri a um estágio no IPO de Coimbra para análises clínicas..O que a desviou desse caminho? Quando disse ao meu professor de Biologia Molecular, Carlos Faro, que era isso que ia fazer, ele não se conformou. Éramos poucos alunos, uns 28, ele conhecia-nos muito bem e tinha uma ideia para cada um. Então telefonou-me para casa e disse-me que não achava bem que saísse de Bioquímica sem ter passado pela área da investigação. Ele fazia isto com todos os alunos, não fui um caso especial, e convenceu-me a concorrer a estágios de investigação. Entrei num de Biologia Molecular e Genética. Adorei..Como é que veio para ao Porto? Quando entrei no mestrado, a Fundação para a Ciência e Tecnologia deixou de dar bolsas de mestrado. Eu tinha prometido a mim mesma que mal estivesse licenciada deixaria de estar dependente dos meus pais, e esta situação foi um sinal. Decidi concorrer para o Ipatimup e fiquei. Fui recrutada como estudante pela professora Raquel Seruca e gostei imenso de trabalhar com ela. Foi uma novidade absoluta trabalhar na oncobiologia, eu vinha da genética molecular básica. Não fiz mestrado, entrei diretamente para o programa doutoral GABBA da Universidade do Porto e fiz doutoramento em Biologia Humana na Faculdade de Medicina do Porto na área do cancro do estômago..Foi aí que começou a investigar o cancro? O meu primeiro trabalho foi sobre o cancro esporádico do estômago em 1997. A professora Raquel Seruca trabalhava em cancro do estômago no Ipatimup. Nessa altura, já tinha constituído um banco de doentes com cancro de estômago, cancro esporádico com amostras de DNA e toda a história clínica dos doentes. Isso permitiu-nos suscitar várias hipóteses no laboratório, testá-las e encontrar defeitos moleculares no DNA. O trabalho foi tão interessante e correu tão bem que escrevi logo um artigo nessa altura para publicar..O que é que a atraiu no cancro do estômago? Não fui eu que escolhi, escolheram-me e eu gostei. Foi a professora Raquel Seruca que me entrevistou para o mestrado. Se fosse hoje, e pensando na entrevista que dei, eu não me teria escolhido. Estava tão agarrada à minha história em Coimbra que passei a entrevista toda a dizer que gostava do trabalho que fazia lá. Ora alguém que está a recrutar alguém para vir trabalhar para o Porto, estar a ouvir isso durante tanto tempo não terá sido muito simpático, penso eu. Mas era muito novinha, a idade não ajudava..O que acha que a professora Raquel viu em si para a escolher? Penso que viu entusiasmo, uma coisa que agora é rara. As pessoas têm tanta coisa à sua disposição, que são absolutamente incapazes de se fascinarem com o que têm à sua volta. Não é só na investigação, é em tudo. As pessoas têm tudo. E, na altura, tínhamos pouquíssimo. Trabalhávamos 50 vezes mais do que agora, não estou a dizer que isso era melhor ou que éramos melhores do que os jovens de agora, a questão é que tínhamos de lutar pelas coisas e para que elas acontecessem..Como foi a mudança para o Porto? Uma semana depois queria ir-me embora. Não sou chorona, mas lembro-me de ter ligado aos meus pais e de lhes dizer que estava infeliz. E eles perguntaram-me porquê. Eu disse-lhes que me faltavam as pessoas a quem me tinha ligado nos últimos anos. Eles disseram-me: "Filha, volta para Coimbra. Faz o mestrado lá, que nós ajudamos-te." Foi aí que lhes disse que não. Tinha conseguido finalmente um trabalho em que era independente e que iria aguentar. O problema era meu, não dos outros. E tive de me adaptar..O que foi mais difícil nessa adaptação? O trabalho não foi difícil. No Ipatimup, as pessoas foram absolutamente excecionais. Por isso é que tudo isto é uma família. Na altura, criei um grupo de amigos que ainda persiste, o que quer dizer alguma coisa. A professora Raquel é uma pessoa excecional. Estava sempre muito motivada e a motivar-nos. Eu tinha 23 anos e fui logo muito exposta à discussão científica, a que não estava muito habituada. Em 1997, no laboratório onde estava no Ipatimup só tínhamos dois computadores e lutávamos entre nós para os poder usar. O acesso à informação na internet era mínimo e o professor Sobrinho Simões fazia uma coisa absolutamente excecional. Ia aos congressos no estrangeiro e fotocopiava os sumários dos trabalhos de investigação que achava interessantes. Quando chegava ia ao laboratório e distribuía-os por cada um de nós e dizia: "Isto é para amanhã." Era o salve-se quem puder. Tínhamos de ir à procura, estudar, meter a mão na massa para fazer a apresentação. Ao mesmo tempo, isto era muito interessante. Todas as sextas-feiras tínhamos uma reunião, o Journal Club, e tínhamos de ter apresentações. Era a sério..Agora não é assim? Acho que não, e por múltiplas razões. Não é por considerar que os alunos sejam piores agora. Não, acho que nós fazíamos muito com pouco. Eles fazem talvez mais do que nós, mas com tudo ao seu dispor. Hoje têm ao seu dispor um laboratório com todos os reagentes e instrumentos de que precisam para trabalhar. Nós tínhamos de fazer e inventar os reagentes e muitas vezes os instrumentos de raiz..A carreira de investigação é demasiado importante para não estar bem estabelecida.Depois do mestrado, passou ao doutoramento, andou por Cambridge, Vancouver, Alemanha e regressou ao Porto. Fiz um projeto de doutoramento com o Dr. Carlos Caldas, que foi meu orientador em Cambridge, e com a professora Raquel Seruca, que foi orientadora em Portugal, sobre suscetibilidade genética em cancro do estômago em duas vertentes: em cancro esporádico e cancro hereditário. Isto aconteceu em 1998, quando foi descoberto o gene que causa cancro hereditário do estômago. Estava tudo em rebuliço e a querer saber-se mais sobre esta síndrome, que é o que ainda estudo hoje. Depois de uma breve passagem por Paris num primeiro pós-doc, fui para Vancouver fazer o segundo pós-doc e aprender mais sobre cancro hereditário e sequenciação de nova geração. Voltei a Portugal em 2005 e fui contratada como investigadora júnior. Em 2011, fiz uma sabática no Max Planck Institute na Alemanha e em 2012 propus-me a group leader no Ipatimup. Preparei uma candidatura que foi aceite e, a partir de janeiro de 2013, tornei-me investigadora independente. Em 2015, integrei o I3S e continuei como investigadora principal e group leader..Tem sido uma vida imprevisível, sempre de bolsa em bolsa? Não, tive a minha última bolsa de pós-doc em 2005, tinha acabado de completar 32 anos. A partir daí fui sempre contratada. Em 2013 obtive um contrato sem termo com o Ipatimup. Mas a carreira científica em Portugal está mal estabelecida. É uma pena, porque acho que não deve haver muitas profissões em que o amor à camisola é tão grande como nesta. Na realidade, ganhamos muito pouco, através de bolsas e durante muito tempo, uma boa parte dos anos da nossa idade adulta. Um investigador pode chegar aos 35, 36 ou 40 anos e continuar a ter uma bolsa para trabalhar. São 1450 euros por 12 meses para os pós-doc, mas é uma bolsa, sem qualquer ligação laboral formal. Só o nome bolsa já é uma afronta. Está a pagar-se ultragraduação de forma medíocre, o que não acontece em mais país nenhum. Recentemente muitos pós-doc foram contratados, mas a carreira de um cientista tem de ficar escrita na pedra, tem de ser gerida com base na meritocracia e, com base nisso, tem de ser melhorada. É uma profissão demasiado importante para a vida de um país, para a educação de uma população, dos nossos filhos, para não ser creditada como uma carreira bem estabelecida..Teve dificuldade em chegar onde já chegou? Nunca tive dificuldades em construir o meu currículo, porque nunca tive medo e nunca na minha vida esperei que acabasse uma bolsa para pensar na próxima. Dois anos antes de acabar qualquer coisa estava a pensar no que iria fazer a seguir, estava logo a ver várias possibilidades e a concorrer para muitas coisas. Nalgumas não fiquei, mas também nunca deixei de ficar em algum lado. Fui fazendo sempre o que quis, com as oportunidades que estavam disponíveis.