Na obra de Carla Filipe há um traço forte de ativismo social que não se esconde em compromissos estéticos. Pelo contrário, é esse o alicerce em que assenta a estética desta artista multidisciplinar com pouco mais de 20 anos de carreira mas autora já de uma extensa obra que se instala agora em vários espaços do Museu de Serralves, numa primeira grande mostra antológica do seu trabalho. "Quando abordo um assunto tento sempre inscrever a minha posição perante cada tema, não ficar neutra. Esse sentido de responsabilidade é muito importante e deve ficar vincado em cada trabalho", assume ao DN, no final de uma visita guiada à exposição "In My Own Language I am Independente", que hoje abre ao público e se manterá em Serralves até 10 de setembro..A independência e a linguagem própria desta artista nascida em Vila Nova da Barquinha, mas que montou no Porto a sua base estão evidentes ao longo desta exposição que celebra uma plataforma criativa erguida sem preconceitos nem tabus ao longo de duas décadas. Aqui estão retratados temas tão impactantes e transversais quanto o trabalho, a família, a sexualidade, o patriarcado, o medo, a mulher, o sindicalismo, a política... enfim, todo e qualquer pedaço do enorme puzzle social, sob o olhar crítico e analítico de uma artista que assumidamente rejeita a neutralidade..Quem percorrer de forma atenta os corredores e salas do Museu de Serralves (bem como a Biblioteca e o Terraço) vai encontrar referências socialmente marcantes e tão diversas como a greve dos trabalhadores dos caminhos de ferro em 1919, as origens do feminismo em Portugal, a pobreza e precariedade instaladas no período da troika ou a recriação do estilo satírico de Bordalo Pinheiro adaptada a novas "musas inspiradoras", - que vão desde Cavaco Silva e o seu "Dia da Raça" ou a sua "escassa reforma", até aos estudos de Sócrates em Paris ou aos submarinos de Paulo Portas.."O ativismo é um ponto humano. E a arte é a minha forma de desenvolver ideias, seja através de imagem, instalação... Há quem use a literatura, ou outras formas, eu exponho as minhas ideias através da arte", refere. Mas não é um ativismo imediato, de simples protesto, o que move Carla Filipe. É um convite à reflexão, diz. "É importante que o visitante desperte uma consciência quando observa um trabalho. Por vezes a linguagem ativista é tão direta e tão simples que a pessoa não reflete sobre algo, apenas ficamos cheios de propaganda. Por isso há aqui um jogo de ambiente, de instalação que leva a pessoa a mapear o seu entendimento sobre essa obra e fomenta a partilha de experiências"..Território, memória, identidade ou representação são noções bem presentes no universo criativo de Carla Filipe. Até porque "as origens são importantes", sublinha. E as origens de Carla estão no Ribatejo numa família de ferroviários, "em experiências e memórias de coletivos, de sindicatos, influências que realçam a importância da geografia e dos contextos políticos de determinadas geografias"..Não por acaso, durante o primeiro mês da exposição o percurso inicia-se no hall do museu com a apresentação de peças que remetem para o universo dos caminhos de ferro e também para os bairros construídos entre as décadas de 1910 e 1920 para as famílias dos guardas das passagens de nível, fundamentais para combater o problema da habitação - tema sempre atual. Dispostas pelo chão estão seis esculturas alusivas aos marcos miliários que indicavam a distância entre a passagem de nível e a estação central em Lisboa..As referências às origens ferroviárias vão suceder-se ao longo da exibição, como é caso da Cartografia Sonora, audível na primeira sala, uma peça captada em field recording na estação do Entroncamento, em 2014, ou o conjunto de desenhos exposto na sala seguinte Ex-votos: domingo, cemitério anónimo e memorial aos ferroviários, resultantes da apropriação de narrativas retiradas de publicações da Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses da primeira metade do século XX..Apesar de ser apresentada como uma das "mais marcantes artistas portuguesas do novo milénio", o objeto de trabalho de Carla Filipe não se esgota temporalmente nos anos 2000, como já se referiu, recuando até horizontes bem mais longínquos, como essas convulsões ferroviárias do início do século passado, na época da Primeira República, ainda pré-Estado Novo, e atravessando todo o século XX, do Ultramar aos fenómenos sociais e políticos pós 25 de abril..A artista ribatejana - cujo percurso foi fortemente marcado pela cena artística do Porto nos primeiros anos do milénio, tendo cofundado dois espaços coletivos (Salão Olímpico e Projeto Apêndice) - incorpora facetas de historiadora, socióloga, antropóloga, "com muito trabalho de campo, de arquivo, de biblioteca". Observa, recolhe, entrevista e documenta vestígios de narrativas individuais e coletivas, interpelando as discursividades convencionadas acerca do passado recente e da própria atualidade. Nas palavras da própria: "Tento compreender e representar histórias políticas e sociais que não são aprofundadas pelas instituições"..Como aquela com que nos confrontamos no final da visita, a todo o comprimento de um extenso corredor. Ordem de Assalto é uma instalação que integra alimentos reais (vários tipos de pão, bacalhau, frutos secos, chocolate até), suspensos por cordas desde o teto, e que remete para uma lenda dos tempos da Primeira República, sobre a alegada existência de uma determinada hora em que se fechariam os olhos aos assaltos a mercearias, para fazer face à extrema pobreza da população. Carla Filipe evocou essa memória histórica durante o período da troika em Portugal, para denunciar as dificuldades que tanta gente voltou a enfrentar, um século depois. E mostra-a agora em Serralves, numa altura em que o monstro da inflação faz com que "as dificuldades voltem a entrar-nos pelos olhos dentro todos os dias".