"Canto flamenco, já cantei fado, mas sinto sempre que é um atrevimento"

É um grande nome do flamenco e tem uma carreira que ronda já meio século. Esteve há dias em Campo Maior para receber o Prémio Internacional Terras sem Sombra, presenteando o público português com uma curta atuação. O DN conversou com ela na vila alentejana.
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Recebe-me no camarim a mulher que ao nome de batismo Carmen juntou Linares, o da terra onde nasceu em 1951, na província andaluza de Jaén. Foi assim que a espanhola Carmen Pacheco Rodríguez se tornou a estrela do flamenco que dá pelo nome de Carmen Linares e que, pelo seu enorme talento, no fim de semana passado foi um dos premiados do Festival Terras sem Sombra, na categoria de Música. Na mesma ocasião, o arquiteto João de Almeida recebeu o prémio de Património Cultural e o Jardim Botânico de Cabo Verde o de Biodiversidade. A cerimónia, que decorreu no Centro Cultural de Campo Maior, terminou com uma pequena atuação de Carmen Linares, muito pessoal, acompanhada à guitarra pelo filho Eduardo Espin. A cantora, que já interpretou El Amor Brujo, de Manuel de Falla, e gravou álbuns de referência como Canciones Populares de Lorca, preferiu desta vez destacar Juan Ramón Jiménez, cantando no final a cappella um poema deste Nobel da Literatura espanhol. Foi aplaudida de pé, como merece.

Relembrou agora em palco aos portugueses aqui presentes em Campo Maior ter chegado a cantar juntamente com Amália Rodrigues. Existe mesmo muito em comum entre o seu flamenco e o fado ou força-se a busca de semelhanças só porque são músicas populares de Espanha e Portugal, países vizinhos?
Bem, para mim existem semelhanças sim. O fado é uma música popular, começou por ser cantado pelo povo, e tem essa energia e essa força. O flamenco é igual, vem das vivências do povo, é também uma música popular. Depois o fado fez-se arte, porque já não era só o povo a cantá-lo. Surgiu gente com uma grande voz que o musicou mais, e isso aconteceu também com o flamenco, que antes era cantado só por camponeses. O flamenco cantava-se em família, mas depois chega um artista, engrandece-o e leva-o por todo o mundo.

É possível encontrar também uma remota influência árabe nas duas músicas?
No flamenco há influências dos árabes, que estiveram em Espanha sete séculos, mas há também influências sefarditas e até hindus. O seu centro é a Andaluzia e aí todas essas influências são fortes e enriqueceram-no. Para mim, tudo o que seja somar e acrescentar à música engrandece-a, enriquece-a.

Amália morreu há 20 anos já. Guarda alguma memória pessoal da fadista?
Sim, atuámos juntas. Eu já a tinha ouvido muito em casa, tínhamos discos dela. E Amália ia muito a Espanha, atuava muito na televisão, quando só havia dois canais e víamos tudo. Era uma artista de uma grandeza que a mim me recordava as cantoras antigas de flamenco, cheias de carácter. E Amália gostava muitíssimo do flamenco. Hoje expliquei que ia cantar uma petenera, que é uma das formas de flamenco. Ela cantou peteneras. E cantava-as muito bem. Amália cantou várias coisas de flamenco, tenho em casa as gravações. E, logicamente, surgiram novas gerações de fadistas, homens e mulheres, que são uma maravilha.

Recorda-se do momento em que atuou com Amália?
Sim, foi por causa de uma Expo. Antes de uma Expo. Ela já estava muito velhinha, mas encantou-me.

Alguma vez a desafiaram a cantar um fado?
Sim, sim. Mas para mim é muito difícil. Canto flamenco, já cantei fado, mas sinto sempre que é um atrevimento. Há um que gosto muito... ["foi por vontade de Deus, que eu vivo nesta ansiedade, que todos os ais são meus, que é toda minha a saudade" [canta em português este trecho de Estranha Forma de Vida]. É tão bonita esta canção. Faz-me sonhar. Adoro o fado.

Como explica que o flamenco, assim como outras tradições andaluzas, seja um sinónimo de Espanha?
A música andaluza, o flamenco, é uma música universal, que conecta muito bem com o resto de Espanha, mas também com o mundo. Eu sempre que venho a Portugal sinto que o público gosta muito. Mas também o fado é português e ao mesmo tempo universal. Em Espanha, Cristina Branco ou Mariza esgotam as bilheteiras.

Mas no caso do flamenco, é uma forma de música popular em toda a Espanha?
Em toda. No sul como no norte. Porque o flamenco tem qualidade. E, quando a música tem qualidade, expande-se.

Cantou agora Juan Ramón Jiménez. É o seu poeta preferido?
Bem, gosto muito de Juan Ramón Jiménez, que foi Nobel da Literatura há muitos, muitos anos. E, claro, adoro García Lorca, que é muito especial, também o mais conhecido.

O flamenco começou como música popular, mas hoje vai buscar o seu repertório aos grandes escritores?
Sim, as letras do flamenco sempre foram letras populares, mas desde há alguns anos têm surgido artistas como Enrique Moriente que foi o primeiro a musicar Lorca e Miguel Hernández.

São poemas que não foram pensados para ser cantados.
São poemas que nós lemos e nos pomos ao serviço desse poema e pensamos sobre com o que entronca o carácter desse poema? Com que estilo de flamenco entronca melhor? Este último canto que fiz aqui, a cappella, é um poema de Juan Ramón Jiménez, mas tem a métrica e o carácter, pela sua letra que é muito profunda, do canto por martinete, um estilo que é o martinete. Há sempre formas de incorporar poemas no flamenco, e se algum poema não encaixa nessa métrica fazemos uma música especial.

A reação do público em Campo Maior à sua atuação foi extraordinária. É sempre assim quando atua em Portugal ou por estar no Alentejo, próximo da fronteira, há um entusiasmo maior pelo flamenco?
Em Portugal gostam do flamenco, mesmo quando não percebem a letra. Aqui, sim, percebiam a letra, têm mais contacto com o espanhol, com a língua, e a letra é muito importante, é 50% do flamenco. No estrangeiro muita vezes não percebem a letra mas ouvem a música, que também é a alma do flamenco.

Qual a importância de bater as palmas, bater os pés? É importante para o ritmo?
Sim, é. Eu estou a ouvir uma guitarra e com as minhas mãos ajudo esse ritmo. E gosto, quando canto, de ouvir a batida. É a repercussão mais autêntica do flamenco. Em alguns espetáculos trago para o palco pessoas para bater palmas, mas hoje foi um pequeno espetáculo, especial, pessoal, por isso só eu e o meu filho Eduardo.

O flamenco começou a cappella?
Começou nos bailes e depressa às vozes e ao bater das palmas se juntou a guitarra. Mas quando as mães cantam para embalar os bebés é só a voz. Também havia as saetas, que se cantavam na semana santa. Tudo muito primitivo e que incorporou o flamenco.

Além do Eduardo, Eduardo Espin, há mais gente na sua família ligada ao flamenco? É assunto de família?
O meu pai tocava guitarra, era guitarrista, não profissional mas como aficionado. Comecei com ele. E tenho uma filha, Lucia Espin, que é atriz e cantora.

Canta flamenco?
Não. Canta outro género de música. Diz-me: "Mamã, o flamenco é tão bonito, mas é tão difícil." Não a posso obrigar [risos].

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