Cante alentejano
Nos últimos dias, suscitou alguma polémica a de- cisão governamental de não apresentar à UNESCO, no corrente ano, a candidatura do cante alentejano ao estatuto de Património Cultural Imaterial da Humanidade. A comissão promotora da iniciativa, ecoando o sentimento de outros apoiantes da mesma, manifestou o seu desagrado por esta tomada de posição.
É compreensível o desapontamento que atravessa as comunidades alentejanas que estiveram envolvidas na preparação do projeto, às quais tinha sido criada uma expectativa temporal para a conclusão do mesmo. Devo dizer, porém, que entendo menos bem algumas despropositadas e menos elegantes acusações personalizadas que surgiram neste contexto, que apenas posso levar à conta de exagerada emoção entretanto suscitada.
Desde o primeiro momento que os interlocutores que, no quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa e em Paris, dialogaram com os representantes da candidatura deixaram muito claro serem amplamente favoráveis à iniciativa, a qual, aliás, desde o início estimularam. Esse terá sido também o sentimento das altas autoridades do Estado e outras personalidades que expressaram o seu apoio à mesma. Toda essa solidariedade para com o projeto era dada, naturalmente, no pressuposto de que a candidatura seria apresentada com condições de pleno sucesso, tanto mais que, no caso de uma eventual rejeição, o processo teria de esperar cerca de cinco anos antes de poder ser repetido, com o incontornável efeito negativo que tal decisão não deixaria de ter na memória interna da própria UNESCO.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros não tem, no seu seio, uma expertise própria, pelo que, como em casos análogos, teria sempre que se apoiar, para a formulação do seu juízo sobre a oportu- nidade de apresentação da candidatura, em opiniões técnicas abalizadas, nomeadamente as que se projetam na comissão científica que a própria organização criou.
A comissão científica da candidatura foi presidida pelo professor Rui Vieira Nery, que já exercera idênticas funções na recente e bem-sucedida candidatura do fado ao estatuto agora pretendido pelo cante alentejano. O professor Vieira Nery pediu, entretanto, demissão do cargo e, ao fazê-lo, deixou algumas críticas àquilo que entendia serem alguns pontos menos consistentes desta candidatura. Sem desprimor para os restantes membros, a pessoa que, de forma unânime, era considerada como imediatamente mais qualificada, no seio da comissão científica, era a pro- fessora Salwa Castelo-Branco, a quem, aliás, os promotores da candidatura haviam solicitado a revisão final do respetivo processo. Ora também esta eminente especialista, conjuntamente com outro membro da comissão, considerou que, no seu estado atual de preparação, a candidatura teria fragilidades que poderiam conduzir à sua rejeição.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros - e não apenas a Comissão Nacional da UNESCO, como erradamente é sugerido - entendeu que, perante estas abalizadas opiniões e em tais condições, constituiria um elevado risco propor a candidatura este ano. Nada do trabalho já feito, na laboriosa preparação do dossiê que foi de-senvolvida, se perderá. Apenas se pretende que, no tempo que agora temos pela frente, possam vir a ser colmatadas as deficiências e os problemas entretanto detetados.
Todos temos interesse em que ao cante alentejano seja dado um estatuto internacional à altura da indiscutível qualidade que esta manifestação popular tem, como fator identitário de uma região e como património cultural de prestígio do próprio País. Por isso, com serenidade e redobrado rigor, vamos trabalhar para que, num prazo que esperamos curto, possamos apresentar na UNESCO uma candidatura de sucesso do cante alentejano.