Ouvem-se pássaros e cães ao longe, a meio do ensaio um galo aparece a cacarejar mesmo ali ao nosso lado, passeando por entre as cadeiras do anfiteatro, e, ao final de tarde, enquanto o sol desce, já é capaz de correr uma aragem agradável que nos transporta para esse lugar no fim do mundo que é o Camino Real..Foi a pandemia de covid-19 que levou o espetáculo do Teatro Experimental de Cascais (TEC) para o auditório ao ar livre do Parque Marechal Carmona, em Cascais, mas à medida que vemos o espetáculo fica difícil imaginá-lo noutro local qualquer: não haverá deserto, é certo, mas é ali, por entre as árvores verdejantes e o "caracol" de pedra, que fica o tal Camino Real, sítio de gente sem rumo, caída em desgraça ou simplesmente caída num sonho - Dom Quixote, Lorde Byron e a Dama das Camélias são apenas alguns dos habitantes. "Este lugar baralha-me", queixa-se o americano Killroy, espécie de cowboy que é campeão de boxe e traz consigo todas as ambições que os dólares possam comprar..Depois de Bruscamente no Verão Passado, o TEC atreve-se em mais uma peça de Tennessee Williams. O encenador, Carlos Avilez, recorda que já tinha feito o Doce Pássaro da Juventude e, depois, "uma outra experiência que correu muito bem, O Comboio da Madrugada, com a Eunice". Mas este Camino Real é "completamente diferente. É uma peça estranha até dentro do universo do Tennessee Williams": "É outra fase dele, não é nada naturalista. É o sonho de Quixote, mas não só, é o sonho dos atores, do encenador, de todos nós. Reflete problemas muito fortes, a morte, o sexo, a violência, a solidão.".É "uma das peças mais controversas de Tennessee Williams", explica a companhia no programa, "não só pela estética do seu texto cénico como também devido à crítica nele implícita à ideologia dominante do imperialismo"..Dando largas ao delírio desta "espécie de fantasia cósmica", como a descreveu o The New York Times, em 1953, em Camino Real estão quase 50 pessoas em cena. Do elenco fazem parte Francisco Monteiro Lopes, João Pecegueiro, Leando Paulín, Luiz Rizo, Renato Pino, Rodrigo Cachucho, Sérgio Silva, Teresa Côrte-Real e 40 alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, 33 dos quais finalistas. "Não podia ter esta gente toda no palco", diz o encenador, justificando a apresentação no jardim, às 18.00.."Este ano foi muito complicado por causa do confinamento. Perdeu-se uma coisa muito importante que é o contacto direto, abraçar as pessoas, tocar as pessoas. Isto de estarmos sempre a desconfiar uns dos outros é terrível. Além disso, na minha opinião, o ensino online não funciona no teatro. Tivemos agora de recuperar o tempo perdido", explica Carlos Avilez, que não se cansa de elogiar o grupo de finalistas da escola. "Foi brutal o que se trabalhou. Em três ou quatro semanas fizemos esta peça, com três elencos. Queria que todos fizessem papéis importantes, porque eles merecem.".Tem sido um ano muito complicado também por outros motivos. "Estas mortes abalaram-me muito", admite Carlos Avilez. Filipe Duarte, que morreu em abril, iria interpretar no próximo ano o Cláudio do Hamlet. Há dias, desapareceu outro amigo, Juvenal Garcês, que pouco antes de morrer tinha deixado uma mensagem no seu Facebook a elogiar o TEC. E, agora, a Fernanda Lapa, que era professora da escola de teatro.."Era uma mulher única", diz o encenador. "Tenho um respeito profundo por ela. Éramos amigos. Conhecia-a há 50 e tal anos, fizemos juntos, no TEC, o Breve Sumário da História de Deus, em 1970 - entrava o José Jorge Letria, o Pedro Barroso, o Mário Viegas, a Fernanda Lapa e outros. Era uma atriz ímpar e uma mulher de uma coerência política e humana brutal. É uma perda enorme para o teatro." Não consegue evitar emocionar-se..Os alunos que agora fazem Camino Real conheciam-na bem. Logo no primeiro ano, ela trabalhou com eles. "Fez com eles o exercício Por trás da Primavera, foi um dos exercícios mais importantes que se fez na escola", conta Carlos Avilez. "A Fernanda vinha sempre ver a estreia de um espetáculo com alunos dela, nunca faltava. E no final vinha falar connosco. Vou sentir a falta dela nesta estreia.".No final do ensaio geral, o elenco todo reunido em volta do "mestre", como lhe chamam, os jovens atores perguntam se podem dedicar a estreia a Fernanda Lapa. "Claro que sim", responde Avilez. "O teatro continua sempre, o teatro é uma festa e nós vamos fazer o nosso espetáculo. Mas vamos pensar na Fernanda Lapa. E os aplausos serão para ela. É assim que homenageamos os atores. Com muitos aplausos."."O teatro não pode parar", repete Carlos Avilez. Em novembro, o TEC vai estrear a Yerma, do Llorca, com Sara Matos. Depois, fará o Hamlet, de Shakespeare, com José Condessa e Bárbara Branco. No próximo ano, a peça com os alunos será a "proibidíssima" Concílio do Amor, de Oskar Panizza, com tradução de Luiza Neto Jorge. Na sala de teatro, no jardim ou noutro lugar qualquer..Camino Real de Tennessee Williams pelo Teatro Experimental de Cascais (TEC) encenação de Carlos Avilez no Parque Marechal Carmona, Cascais de 7 a 20 de agosto - de terça a domingo, às 18.00 Lotação: 50 lugares Bilhetes: de 5 a 12,50 euros
Ouvem-se pássaros e cães ao longe, a meio do ensaio um galo aparece a cacarejar mesmo ali ao nosso lado, passeando por entre as cadeiras do anfiteatro, e, ao final de tarde, enquanto o sol desce, já é capaz de correr uma aragem agradável que nos transporta para esse lugar no fim do mundo que é o Camino Real..Foi a pandemia de covid-19 que levou o espetáculo do Teatro Experimental de Cascais (TEC) para o auditório ao ar livre do Parque Marechal Carmona, em Cascais, mas à medida que vemos o espetáculo fica difícil imaginá-lo noutro local qualquer: não haverá deserto, é certo, mas é ali, por entre as árvores verdejantes e o "caracol" de pedra, que fica o tal Camino Real, sítio de gente sem rumo, caída em desgraça ou simplesmente caída num sonho - Dom Quixote, Lorde Byron e a Dama das Camélias são apenas alguns dos habitantes. "Este lugar baralha-me", queixa-se o americano Killroy, espécie de cowboy que é campeão de boxe e traz consigo todas as ambições que os dólares possam comprar..Depois de Bruscamente no Verão Passado, o TEC atreve-se em mais uma peça de Tennessee Williams. O encenador, Carlos Avilez, recorda que já tinha feito o Doce Pássaro da Juventude e, depois, "uma outra experiência que correu muito bem, O Comboio da Madrugada, com a Eunice". Mas este Camino Real é "completamente diferente. É uma peça estranha até dentro do universo do Tennessee Williams": "É outra fase dele, não é nada naturalista. É o sonho de Quixote, mas não só, é o sonho dos atores, do encenador, de todos nós. Reflete problemas muito fortes, a morte, o sexo, a violência, a solidão.".É "uma das peças mais controversas de Tennessee Williams", explica a companhia no programa, "não só pela estética do seu texto cénico como também devido à crítica nele implícita à ideologia dominante do imperialismo"..Dando largas ao delírio desta "espécie de fantasia cósmica", como a descreveu o The New York Times, em 1953, em Camino Real estão quase 50 pessoas em cena. Do elenco fazem parte Francisco Monteiro Lopes, João Pecegueiro, Leando Paulín, Luiz Rizo, Renato Pino, Rodrigo Cachucho, Sérgio Silva, Teresa Côrte-Real e 40 alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, 33 dos quais finalistas. "Não podia ter esta gente toda no palco", diz o encenador, justificando a apresentação no jardim, às 18.00.."Este ano foi muito complicado por causa do confinamento. Perdeu-se uma coisa muito importante que é o contacto direto, abraçar as pessoas, tocar as pessoas. Isto de estarmos sempre a desconfiar uns dos outros é terrível. Além disso, na minha opinião, o ensino online não funciona no teatro. Tivemos agora de recuperar o tempo perdido", explica Carlos Avilez, que não se cansa de elogiar o grupo de finalistas da escola. "Foi brutal o que se trabalhou. Em três ou quatro semanas fizemos esta peça, com três elencos. Queria que todos fizessem papéis importantes, porque eles merecem.".Tem sido um ano muito complicado também por outros motivos. "Estas mortes abalaram-me muito", admite Carlos Avilez. Filipe Duarte, que morreu em abril, iria interpretar no próximo ano o Cláudio do Hamlet. Há dias, desapareceu outro amigo, Juvenal Garcês, que pouco antes de morrer tinha deixado uma mensagem no seu Facebook a elogiar o TEC. E, agora, a Fernanda Lapa, que era professora da escola de teatro.."Era uma mulher única", diz o encenador. "Tenho um respeito profundo por ela. Éramos amigos. Conhecia-a há 50 e tal anos, fizemos juntos, no TEC, o Breve Sumário da História de Deus, em 1970 - entrava o José Jorge Letria, o Pedro Barroso, o Mário Viegas, a Fernanda Lapa e outros. Era uma atriz ímpar e uma mulher de uma coerência política e humana brutal. É uma perda enorme para o teatro." Não consegue evitar emocionar-se..Os alunos que agora fazem Camino Real conheciam-na bem. Logo no primeiro ano, ela trabalhou com eles. "Fez com eles o exercício Por trás da Primavera, foi um dos exercícios mais importantes que se fez na escola", conta Carlos Avilez. "A Fernanda vinha sempre ver a estreia de um espetáculo com alunos dela, nunca faltava. E no final vinha falar connosco. Vou sentir a falta dela nesta estreia.".No final do ensaio geral, o elenco todo reunido em volta do "mestre", como lhe chamam, os jovens atores perguntam se podem dedicar a estreia a Fernanda Lapa. "Claro que sim", responde Avilez. "O teatro continua sempre, o teatro é uma festa e nós vamos fazer o nosso espetáculo. Mas vamos pensar na Fernanda Lapa. E os aplausos serão para ela. É assim que homenageamos os atores. Com muitos aplausos."."O teatro não pode parar", repete Carlos Avilez. Em novembro, o TEC vai estrear a Yerma, do Llorca, com Sara Matos. Depois, fará o Hamlet, de Shakespeare, com José Condessa e Bárbara Branco. No próximo ano, a peça com os alunos será a "proibidíssima" Concílio do Amor, de Oskar Panizza, com tradução de Luiza Neto Jorge. Na sala de teatro, no jardim ou noutro lugar qualquer..Camino Real de Tennessee Williams pelo Teatro Experimental de Cascais (TEC) encenação de Carlos Avilez no Parque Marechal Carmona, Cascais de 7 a 20 de agosto - de terça a domingo, às 18.00 Lotação: 50 lugares Bilhetes: de 5 a 12,50 euros